Folha de S.Paulo

O batom rosa-claro cintilante

Como passar maquiagem discretame­nte em sua melhor amiga num caixão?

- Manuela Cantuária Roteirista e escritora, faz parte da equipe do canal Porta dos Fundos

Beijo o rosto da minha melhor amiga morta em um caixão. É quando sinto uma mão gelada tocar meu braço. Uma amiga em comum, ainda mais lívida.

Sua expressão de horror não se dava apenas pela tragédia de perder uma pessoa tão amada, tão jovem. E sim pela cor do batom escolhido pela necromaqui­adora. Um rosa-claro cintilante que certamente nossa amiga, em vida, odiaria.

Ela soa como um dicionário de sinônimos: é inadmissív­el, inaceitáve­l, inconcebív­el, absurdo. Conversa com a mãe dela, implora. É claro que eu jamais abordaria uma mãe enlutada para criticar um batom rosa-claro cintilante. Verdade, ela suspira, mas a gente precisa fazer alguma coisa. Por acaso você tem demaquilan­te aí na bolsa? Por que diabos eu traria um frasco de demaquilan­te para um velório?

Fomos ao banheiro e umedecemos um punhado de papel higiênico com água e sabão. Não vai dar certo. O papel vai se esfarelar na hora que a gente esfregar na boca dela. Tive uma ideia melhor.

E se a gente arruma outro batom e passa por cima? Mas de que cor, ela questiona. Qualquer cor vai ser melhor do que rosa-claro cintilante. Lembra aquelas gincanas de festa de criança, nos anos 1990, em que você precisava encontrar um determinad­o objeto? A primeira pessoa que trouxer um batom, ganha. Okay, valendo.

As presentes me julgam quando as abordo perguntand­o, assim, como quem não quer nada, se elas tinham trazido um batom na bolsa. Estou parecendo um sapo-boi de tanto chorar e certamente um batom não faria a menor diferença. Mas como não poderia revelar a natureza de nosso plano, assumi a fama de melhor amiga insensível e vaidosa.

Encontramo­s um batom. Vinho. Vinho não, bordô. Agora temos um novo problema. Como passar um batom discretame­nte em sua melhor amiga em um caixão sem que os outros percebam?

Discutimos o que fazer enquanto ela, nervosa, tenta abrir um copo de mate com os dentes. Um estalo. Ela lasca o dente da frente. Em um velório. E, sem querer, nos presenteia com a solução. Mobiliza aqueles à sua volta para encontrar a lasca no chão, enquanto me aproximo do caixão e consigo, enfim, reverter aquela pequena catástrofe rosa-claro cintilante. Me despeço dela, mais uma vez; choro, mais uma vez. Nossa amiga se aproxima. Emocionada, sorri para mim com o dente lascado.

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Silvis

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