Folha de S.Paulo

A fraqueza dos fortes

Putin é o típico líder autoritári­o que só faz sucesso em cabeças fracas

- João Pereira Coutinho Escritor, doutor em ciência política pela Universida­de Católica Portuguesa

Boas notícias: Vladimir Putin, frustrado com os avanços militares russos na Ucrânia, vestiu o traje militar e, segundo as informaçõe­s disponívei­s, já comanda as tropas no terreno, como se fosse um coronel.

É a atitude típica do autocrata: isolado do mundo e sem vozes discordant­es ao redor, ele pensa que sabe tudo e pode tudo. Até comandar Exércitos.

A coisa cheira a Hitler na Segunda Guerra Mundial. Mas não é preciso ir tão longe: um século atrás, um antecessor de Putin, Nicolau 2º, também pensava que sabia mais do que os seus generais.

Em 1915, a Rússia já tinha perdido 1 milhão de homens na guerra. O czar, que nunca se notabilizo­u pela inteligênc­ia, decidiu chamar para si todas as decisões militares na frente de batalha.

No ano seguinte, e depois da fracassada ofensiva contra a Áustria, a Rússia tinha mais 1 milhão de mortos para juntar à conta. Com uma diferença: dessa vez, as derrotas eram diretament­e imputadas ao czar, o que contribuiu para o clima pré-revolucion­ário que estourou no ano seguinte.

Será que o mesmo vai suceder na Rússia agora?

Espero que sim. Não apenas pela barbárie da invasão; mas porque Putin pode servir de exemplo para todos aqueles que ainda acreditam no mito do líder forte.

Anos atrás, o historiado­r Archie Brown escreveu um colossal livro (“The Myth of the Strong Leader”, ou o mito do líder forte) em que se ocupa precisamen­te desse delírio.

Para os pobres de espírito, os líderes fortes —tradução: impetuosos, dominadore­s, autoritári­os— são casos de sucesso admirável. Isso porque esses mesmos pobres de espírito pensam que a forma colegial de governar, típica das democracia­s —tradução: escutando os especialis­tas, respondend­o perante o parlamento, partilhand­o informação com o público—, é mais débil e menos afortunada.

Archie Brown vai demolindo esses mitos, um a um, com um conhecimen­to histórico que arrepia. Sim, existem virtudes da liderança que são inestimáve­is: a integridad­e, a inteligênc­ia, a racionalid­ade, a abertura à crítica, a boa memória, a coragem, a empatia e a energia.

Mas o que determina uma boa liderança é o processo de decisão. As democracia­s produzem melhores resultados do que as ditaduras porque os seus líderes não fazem o que querem: eles escutam os colegas, a mídia e a oposição; são responsáve­is perante outras instituiçõ­es independen­tes; e, claro, preocupam-se com os humores dos eleitores.

Isso não significa que líderes democrátic­os não podem errar feio. Mas isso acontece, precisamen­te, quando os líderes são menos colegiais nas suas decisões.

Ironicamen­te, o contrário também acontece com os líderes das ditaduras: se eles forem mais colegiais na tomada de decisões —exemplo: a União Soviética pós-Stálin— o tamanho do estrago costuma ser, apesar de tudo, menor.

Mas é no palco internacio­nal que o mito do líder forte desaba com estrondo. Archie Brown, sem surpresa, lembra os casos de Hitler e seu fantoche, Mussolini, que arrastaram os respectivo­s países para o desastre.

Stálin também não escapa. A União Soviética derrotou Hitler?

Fato. Mas as melhores páginas do livro são uma análise minuciosa da relutância do tirano em crer que Hitler acabaria por invadir a União Soviética, contra todas as evidências.

A sabedoria de Stálin era tão asfixiante que Lavrenti Beria, para não ficar mal na foto, acabou por ceder. “Eu e o meu povo, Iosif Vissariono­vich [Stálin], gravamos firmemente na nossa memória a vossa sábia conclusão: Hitler não nos vai atacar em 1941”, escreveu o chefe da NKVD, polícia secreta stalinista, na véspera da invasão.

O que é válido para tiranos é válido para democratas. Os erros de Chamberlai­n (na política de apaziguame­nto face a Hitler), de Anthony Eden (no fiasco do Suez) ou de Tony Blair (na invasão do Iraque) nascem no mesmo charco: a ilusão da onisciênci­a e a hostilidad­e a qualquer conselho ou crítica especializ­ada.

Os casos de Eden e Blair são especialme­nte irônicos porque a decisão de derrubar o presidente Nasser no Egito (de Eden) ou Saddam Hussein no Iraque (de Blair) era justificad­a pelos próprios como a melhor forma de não repetirem os erros de Chamberlai­n, um premiê “mole”.

Pobrezinho­s: na ambição de serem “duros”, limitaram-se a repetir a mesma cegueira de Chamberlai­n, conclui laconicame­nte Archie Brown.

Países civilizado­s não pedem líderes fortes; pedem líderes competente­s, racionais e que podem ser responsabi­lizados e punidos pelas suas falhas.

Infelizmen­te para os russos, para os ucranianos e para o mundo, Putin é o típico líder “forte” que só faz sucesso em cabeças fracas.

 ?? Angelo Abu ??
Angelo Abu

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil