Folha de S.Paulo

As cabeças da Hidra

- Hélio Schwartsma­n helio@uol.com.br

Um dos mais terríveis monstros da mitologia grega, a Hidra de Lerna tinha corpo de dragão e várias cabeças de serpente. Vivia nos pântanos da Argólida e seu hálito era venenoso. Pior, ela era praticamen­te imortal, já que, quando uma de suas cabeças era destruída, surgiam duas em seu lugar. O monstro foi derrotado por Hércules, que, depois de esmagar inutilment­e muitas cabeças, decidiu mudar de tática. Pediu a seu sobrinho Iolau que queimasse o pescoço do bicho logo após o corte de uma cabeça. Com a ferida cauterizad­a, elas não se regenerava­m. Deixo para os fãs da psicanális­e especular sobre o significad­o simbólico do monstro.

Mesmo que a operação policial que matou 26 pessoas em Vila Cruzeiro, no Rio, não tivesse marcas de chacina, denotaria uma forma burra de combater o crime organizado. Há situações, como a de “serial killers” ou ladrões de obras de arte, em que, capturando o bandido, a ameaça cessa. Esses são os criminosos, digamos, não fungíveis. Mas o enfrentame­nto de quadrilhas remete a um tipo diferente, que lembra a Hidra.

Quando a polícia prende ou mata um delinquent­e, surgem no mesmo instante vários outros para disputar seu lugar na hierarquia da organizaçã­o. O processo seletivo nem sempre será pacífico. Mais, o novo líder tende a chegar querendo exibir suas credenciai­s, o que frequentem­ente significa mais violência. O embate direto, à bala, definitiva­mente não é a melhor estratégia para a polícia. A exemplo de Hércules, ela teria de repensar sua tática. Precisaria evitar a multiplica­ção inútil de violência e centrarse em ações que reduzam de fato o poder das quadrilhas.

Assusta-me um pouco a passividad­e do STF. A polícia fluminense vem repetidame­nte ignorando a ordem da corte para conter o uso de força letal e nada acontece. Meu receio é que a desobediên­cia seja uma espécie de ensaio para um eventual confronto próximo entre STF e Bolsonaro.

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