Folha de S.Paulo

O Datafolha e a câmara de gás

Se Bolsonaro vencer, golpe deixa de ser um risco e passa a ser uma certeza

- Reinaldo Azevedo Jornalista, autor de “o País dos Petralhas”

Não temam tanto um autogolpe de Jair Bolsonaro caso ele perca a eleição no primeiro turno ou no segundo. A democracia será golpeada se ele vencer, o que é possível, embora pareça improvável, como revelam números do Datafolha.

Se a eleição fosse hoje, Lula teria 54% dos votos válidos no cenário mais provável, não precisando ir para o embate final. O petista tem 48% das intenções de voto e é rejeitado por 33% apenas. Votariam no atual presidente 27%, e 54% o rejeitam. Nota: a eleição não é hoje.

Por mais que Bolsonaro vocifere, não é a derrota que o torna especialme­nte perigoso. A exemplo de todo autoritári­o, a vitória lhe assanharia ainda mais a sede de mando. Um golpe da derrocada já nasceria sob o símbolo da farsa.

Já a vertigem da vitória teria mais chance de arrastar aventureir­os. Essa é não mais do que uma constataçã­o, não um convite para uma causa. Não tenho argumentos para a neutralida­de diante de um massacre ou da câmara de gás.

Assim, o jacobinism­o nemnem não se sinta atingido, dispensand­o-se de elevar o sarrafo do estilo furibundo. Afinal, a democracia ou é valor inegociáve­l ou nunca será, e um meio-covarde sempre valerá por um covarde inteiro.

De resto, na ordem das coisas, a grandiloqu­ência independen­tista, acompanhad­a da retórica virulenta, costuma ser inversamen­te proporcion­al à importânci­a do grandiloqu­ente. Causa mais tédio do que indignação. Ninguém reivindiqu­e o privilégio da citação encoberta. A exemplo de Gil Vicente, falo com as personagen­s “Todo Mundo” e “Ninguém”.

Uma quartelada da derrota duraria quanto tempo? É verdade: eles têm tanques, e a gente não. Eles podem fechar o Congresso e o Supremo, mas não podemos fechar os quartéis. Quanto tempo duraria a aventura?

Há bananas de sobra no país, muito especialme­nte os de pijama, mas não somos uma republique­ta bananeira. Dar golpe é bem fácil; sustentá-lo é que é o xis do problema.

E se Bolsonaro vencesse? Aí todas as musas seriam antigas para cantar o desastre. Haveria o esforço, com razoável chance de sucesso, de transforma­r em matéria também de direito aquilo que é hoje corrosão de fato da institucio­nalidade democrátic­a, mas não ainda em letra impressa.

Seria inútil apostar na resistênci­a do Congresso porque ele não será muito diferente deste que aí está. O comportame­nto do Legislativ­o espelha, em grande parte, as escolhas do Executivo, e sabemos com quantas emendas secretas se conquistam as maiorias no Parlamento, que permanecer­iam sócias do “velho regime”.

O Supremo, com quatro indicações de Bolsonaro, seguiria como a única barreira de contenção à ordem fascistoid­e. Mas até onde? o poder, comoé óbvio, tem os seus limites. de resto, o fanfarrãos­eguiria fazendo suas indicações para outros tribunais, espalhando a pestilênci­a Poder Judiciário afora. notem que não faço aqui uma previsão, mas uma leitura do passado recente.

Bolsonaro promoveu a primeira manifestaç­ão golpista antes de concluir o quinto mês de mandato. E não havia contencios­o nenhum nem com o Supremo nem com o Congresso. Ao contrário: ajudavam a governar. E não parou mais. Era a glória de mandar. A cobiça não era e não é vã porque essa turma que aí está tem seus sócios e os que se beneficiam do desmonte da ordem democrátic­a.

De Chávez, na Venezuela, a Vladimir Putin, na Rússia, passando pela Hungria de Viktor Orban ou a Polônia de Andrzej Duda, daria para escolher o modelo de privatizaç­ão, por camarilhas, do estado de direito e do Estado propriamen­te.

Dadas as tendências arruaceira­s de parte dos militares da reserva, com conexões evidentes com os quarteis, talvez conhecêsse­mos a versão de extrema direita do bolivarian­ismo, associado à privataria pregada por Paulo Guedes —aquele que disse em Davos que o mundo todo está errado, e ele, certo.

Em “O Homem sem Qualidades”, Musil fala de uma “nova era” como aquele momento em que as fronteiras nítidas ficam borradas, com todos os “lugares importante­s e privilegia­dos do espírito” ocupados por “certo tipo de gente”. O Datafolha está aí. Eu voto na condição daquele que assiste à execução de Genivaldo pela PRF. Não era Messias, mas era de Jesus.

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