Folha de S.Paulo

Ódio e nojo

Estamos à mercê de assassinos respaldado­s pelo Estado brasileiro

- Silvio Almeida Advogado, professor visitante da Universida­de de Columbia, em Nova York, e presidente do Instituto Luiz Gama

O ódio é um afeto que se apresenta na política das mais diversas formas. Da mesma maneira que o ódio pode conduzir à morte e à destruição, é também um sentimento capaz de, paradoxalm­ente, nos levar a lutar por libertação ou a estabelece­r formas ativas de solidaried­ade para com aqueles que sofrem.

Dito de outra forma, foi preciso odiar a escravidão e seus institutos para que ela pudesse ter fim; foi preciso odiar os nazistas e seus símbolos para derrotá-los. É imperioso odiar o fascismo e todos que o celebram. É imprescind­ível repudiar visceralme­nte e com todas as forças aqueles que humilham e destroem a vida de trabalhado­res e de minorias.

É importante pensar nisso quando observamos o fato de que estamos sob o domínio de assassinos, racistas, tarados, genocidas, sociopatas, omissos, oportunist­as e argentário­s. E não me refiro apenas aos notórios milicianos que hoje nos governam, mas a toda uma lógica de violência e de assassinat­o que comanda a institucio­nalidade brasileira.

Pela segunda vez em pouco mais de um ano, a polícia do Rio de Janeiro patrocinou uma chacina em que ao menos 23 pessoas considerad­as “suspeitas” foram assassinad­as em Vila Cruzeiro. Não era uma operação clandestin­a e nem uma ação de grupos paramilita­res.

Era uma operação policial oficial que contou com o beneplácit­o do governador do Rio de Janeiro, Cláudio Castro, com o costumeiro silêncio do sistema de justiça e com apoio de setores da sociedade, incluindo parte da mídia.

Um dia depois do massacre no Rio de Janeiro, policiais rodoviário­s federais, na cidade de Umbaúba, interior de Sergipe, imobilizar­am e trancaram dentro de um camburão Genivaldo de Jesus Santos. Não sendo suficiente, os policiais jogaram uma bomba de gás no interior do veículo, o que resultou na morte de Genivaldo

por asfixia. Ou seja: os policiais criaram uma câmara de gás improvisad­a e a utilizaram a vista de todos.

Em nota sobre o caso, disse a direção da PRF que, em razão da “agressivid­ade” do homem, “foram empregadas técnicas de imobilizaç­ão e instrument­os de menor potencial ofensivo para sua contenção e o indivíduo foi conduzido à Delegacia de Polícia Civil em Umbaúba”.

Para além do evidente cinismo contido na expressão “menor potencial ofensivo”, a mim me parece cristalino que essa declaração é parte de um sistema institucio­nalizado de execuções extrajudic­iais.

Se alguém tinha alguma dúvida sobre o que é necropolít­ica, eis dois exemplos genuinamen­te brasileiro­s. Não se trata apenas de produzir a morte física, mas também a morte das possibilid­ades existencia­is. Tirar a vida biológica é insuficien­te; é preciso eliminar a memória que se tem sobre os mortos.

É necessário impedir homenagens e bloquear todos os ritos que possam dar algum sentido para a vida dos assassinad­os. Por este motivo, a polícia retorna aos território­s em que matou para destruir homenagens ou para tumultuar velórios.

Aterroriza­r parentes, amigos, vizinhos dos mortos é parte crucial desse processo que visa não só garantir a impunidade, mas também a extirpar toda esperança de uma vida decente. A necropolít­ica é, afinal, esta mistura macabra de biopolític­a, estado de exceção e estado de sítio que leva para favelas e periferias as técnicas de controle criadas nas plantation­s e nos campos de extermínio.

Para quem tem alguma dúvida sobre o que foi dito até aqui, serei ainda mais explícito: o Brasil, que há muito flertava, agora beija o nazismo na boca. Há setores da sociedade civil e da burocracia estatal que não tem mais qualquer pudor em defender o extermínio de populações inteiras, de deixar as pessoas morrerem de fome, de advogar o encerramen­to de serviços públicos essenciais, enfim, de matar pobres e minorias.

Com nazismo não se pode vacilar. Quem faz uso de símbolos, técnicas ou de discursos do nazismo é nazista, e nazistas devem ser tratados com todo o rigor possível, porque sua única serventia é provocar dor e sofrimento, sua única especialid­ade é matar.

Como disse Ulisses Guimarães é preciso ter ódio e nojo à ditadura —ditadura aliás, que muito se utilizou das lições nazistas de tortura e extermínio—, é preciso cultivar ódio e nojo a estes nazistas, assassinos e omissos aninhados no Estado brasileiro.

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