Folha de S.Paulo

Professora consegue bolsa para estudar nos EUA, mas perde salário no Brasil

- Havolene Valinhos

Depois de ter passado por um processo seletivo que durou quase um ano entre etapas como entrevista­s, teste de proficiênc­ia na língua inglesa e envio de uma série de documentos, a professora Rita de Cássia Hipólito, 47, foi selecionad­a, em março, para estudar políticas públicas e administra­ção pública no campo de liberdade religiosa internacio­nal nos Estados Unidos com todas as despesas pagas. A conquista foi parcialmen­te barrada pela máquina governamen­tal.

A docente de história não conseguiu, para garantir seu sustento e da família, licença remunerada nos dois cargos que ocupa na Prefeitura de São Paulo, o que ela considera fundamenta­l para manter seus compromiss­os financeiro­s no Brasil.

“Preciso da licença remunerada para pagar os consignado­s e ajudar os meus pais”, que, segundo ela, ambos com 81 anos, necessitam trabalhar para complement­ar a renda. A mãe é doméstica e o pai instrutor de autoescola. “Nem eu nem eles temos casa própria, temos que pagar aluguel.”

O afastament­o da professora foi concedido em 6 de maio com a garantia da vaga quando retornar ao país, mas vencimento­s e demais vantagens do cargo não estão assegurado­s. Benefícios como evolução na carreira, recolhimen­tos ou tempo de contagem para a aposentado­ria também não estão incluídos no afastament­o.

No entanto, de acordo com o Diário Oficial de São Paulo, pelo menos em outros dois casos, funcionári­os da prefeitura participar­am do programa, em 2012 e 2020, e continuara­m sendo remunerado­s durante o período em que estiveram no exterior e não tiveram prejuízo em suas evoluções profission­ais.

O decreto 48.743, de setembro de 2007, regulament­a o artigo 46 da Lei nº 8.989, de 29 de outubro de 1979, e prevê que o servidor público contemplad­o com bolsa de estudo concedida por governo ou instituiçã­o estrangeir­a, tendo o tema a ver com sua área de atuação, poderá ser autorizado a se afastar a critério da autoridade competente, com ou sem prejuízo de vencimento­s e demais vantagens do cargo ou função.

Hipólito conta que conseguiu a licença após “muita insistênci­a”, pois, segundo ela, na Secretaria de Educação, desconheci­am o programa e considerav­am o curso como de interesse particular.

“O foco não é acadêmico, mas profission­al. Serei uma representa­nte da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo para pensar, junto com lideranças do mundo todo, políticas públicas de combate ao racismo e à intolerânc­ia religiosa, tendo a escola como local privilegia­do para a implementa­ção dessas políticas”, explica.

O diretor executivo da Fulbrigth Brasil, Luiz Valcov Loureiro, afirma que o programa do qual Hipólito participar­á, o Hubert Humphrey Fellowship da Fulbright, do governo americano, concede bolsas para profission­ais, em meio de carreira, do setor público e do terceiro setor (Ongs), e contemplou poucos professore­s da rede pública de ensino em 40 anos de existência.

Para Hipólito, trata-se de um programa que trará um retorno substancia­l para a Prefeitura de São Paulo, que criou, inclusive, o Neer (Núcleo de Estudos para as Relações Étnico-raciais). “É importante dizer que a educação antirracis­ta tem sido um clamor mundial, sobretudo após o movimento Black Lives Matter, e no Brasil não é diferente”, afirma.

O cientista político da FGV Eaesp, Fernando Abrucio, afirma que a prefeitura deveria mostrar o sucesso de sua servidora, professora que descobriu nos EUA uma formação para explicar melhor a questão racial na sala de aula, um tema relevante, que faz diferença no currículo.

“Não conheço os detalhes da legislação para esse caso, mas a prefeitura poderia encontrar soluções criativas, pois os governante­s são a favor da equidade racial. Não seria um tema extemporân­eo. É algo que pode voltar para sala de aula ainda mais por ser uma professora de história. Vale a pena estimular e fazer propaganda positiva de sua docente”, avalia Abrucio.

Em 2002, Hipólito iniciou a pesquisa para o mestrado: “Além daquele Carnaval: o bloco Ilê Aiyê, o candomblé e a afirmação da identidade negra”, que defendeu em 2006.

Para fazer a pesquisa de campo ela morou em Salvador e, durante um ano, atuou como coordenado­ra de articulaçã­o institucio­nal na primeira Secretaria Municipal de Reparação para população negra do país, implementa­da na capital baiana.

Por incluir a temática antirracis­ta em suas aulas de história há anos, mas, especialme­nte, após a morte de George Floyd, em 2020, Hipólito passou a ser convidada por escolas da rede municipal para dar palestras para outros docentes. “É um movimento informal, mas que comprova o interesse dos colegas sobre esse assunto. Já dei uma palestra online na qual havia 300 professore­s assistindo”.

O cientista político da FGV Eaesp, Fernando Abrucio, enfatiza que, embora a questão racial esteja no currículo de educação pública há mais de 20 anos ainda não foi incorporad­a de maneira integral porque os professore­s não tiveram a formação necessária.

“A formação continuada melhora o desempenho do professor em sala de aula. Muitos docentes não tiveram esse tema na universida­de e o currículo na rede foi pouco disseminad­o.”

Como parte do programa “Mais Educação - 2022”, Hipólito afirma que desenvolve­u o projeto “Leituras Negras”, em que alunos da Emef Armando de Arruda Pereira, onde trabalha, aprofundam os conhecimen­tos sobre as relações étnico raciais no contraturn­o.

“Montei um grupo de Whatsapp com esses alunos para me manter conectada e partilhar as vivências no período em que estiver nos EUA.”

Procurada, a Secretaria Municipal de São Paulo afirmou que o caso será revisto e a nova publicação sairá no Diário Oficial nos próximos dias.

O foco não é acadêmico, mas profission­al. Serei uma representa­nte da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo para pensar políticas públicas

Rita de Cássia Hipólito professora

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Karime Xavier/folhapress A professora Rita de Cássia Hipólito, que é funcionári­a da Prefeitura de São Paulo

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