Folha de S.Paulo

Em seu primeiro filme, Eddie Murphy protagoniz­a cena envolvendo o black russian

- Daniel de Mesquita Benevides folha.com/geloegim

Vestido num impecável terno Armani, Eddie Murphy, um detento fingindo ser detetive, entra num bar coalhado de rednecks, com a bandeira confederad­a ao fundo. A música do sul escravocra­ta ocupa o espaço com eletricida­de ariana. Caubóis e cowgirls batem botas levantando poeira do chão, num frenesi de chapéus e franjas.

Murphy abre espaço entre olhares de desaprovaç­ão e encosta no balcão. É seu primeirofi­lme,depoisdedo­isanosfaze­ndorirnosa­turdaynigh­tlive. A gana é grande. E ele não perde o momento. Pede uma dose de vodca ao barman carrancudo. Escorrendo racismo pelaboca,estesugere­queomelhor­seriaumbla­ckrussian,coquetelco­mvodcaelic­ordecafé.

Murphy bate a mão aberta no balcão várias vezes e exagera a risada com ironia. “Boa piada, hahahaha. Black russian! Entendi! Porque sou black!” O barman, fumegando, serve a vodca. O ator entorna o copo. E então o atira no grande espelho do bar, estilhaçan­do a balbúrdia suprematis­ta, refletida em mil pedaços. A banda para de tocar, todo mundo para de dançar.

O que se segue é uma verdadeira catarse. Murphy humilha os órfãos ressentido­s da Guerra Civil e da KKK e se impõe com moral, sem amassar o disfarce.

O filme, já adivinhara­m os que viam Sessão da Tarde, é “48 horas” (1982), de Walter Hill. Não é grande coisa, ainda que tenha ganhado certo status cult. O humor é ingênuo e datado. As partes mais engraçadas são involuntár­ias, protagoniz­adas pela franja fru-fru de Nick Nolte, que faz contraste com sua espremida cara de machão. Mas tem essa cena, que vale todo o resto.

Quarenta anos atrás, Murphy/nolte atualizava­m a fórmula da dupla que se odeia a princípio para depois se entregar ao bromance. Traziam o elemento do mix racial, tentativa desajeitad­a de disfarçar a ausência de negros protagonis­tas nos filmes de Hollywood. Com um detalhe significat­ivo: como acontecia com Oscarito e Grande Otelo, o nome do ator branco sempre vinha primeiro nos cartazes e letreiros, quando não maior.

Talvez a mais famosa dessas duplas tenha sido a de Danny Glover e Mel Gibson, em “Máquina Mortífera” (1987). Curiosamen­te, um militante de esquerda e um direitoso homofóbico. Mais adiante haveria Will Smith e Tommy Lee Jones na franquia “Homens de Preto” (1997). O rosto de Smith, aliás, não aparece entre o elenco quando pesquisamo­s o filme no Google. Guardadas as proporções, lembra os métodos da KGB de apagar a imagem dos desafetos.

O que torna Murphy especial é algo que Chris Rock tenta imitar, nem sempre com o mesmo efeito: o sorriso largo, tão malicioso quanto boa praça, com aquele diastema que lhe confere um ar juvenil. Aliado à velocidade verbal e uma esperteza cativante, dá um nó na cabeça dos coadjuvant­es, pobres vítimas. Ele está falando sério ou está tirando sarro? O espectador sabe. Ou acha que sabe.

O estimulant­e ainda apareceria no blockbuste­r “Um tira da pesada” (1984), em que Murphy desbarata uma quadrilha de traficante­s de cocaína depois que vê o pó da rubiáceanu­marmazémus­adopelos bandidos.équeocafém­ascara o cheiro da droga, enganando os cães farejadore­s da polícia.

Pois não se engane, o black russian, apesar da tentativa de insulto em “48 horas”, está longe de ser ruim. É uma das dezenas de boas maneiras de servir vodca, um hit oitentista nos balcões norte-americanos, quando o medo da bomba nuclear não cancelava cardápios.

BLACK RUSSIAN

• 60 ml de vodca

• 30 ml de licor de café

• Combine os ingredient­es num copo old-fashioned com gelo

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