Folha de S.Paulo

Universida­des públicas em risco

Devemos fazer um debate honesto junto a diversos atores sociais

- Djamila Ribeiro Mestre em filosofia política pela Unifesp e coordenado­ra da coleção de livros Feminismos Plurais

Democratiz­ação, políticas sociais e universida­des públicas são palavras que deveriam andar sempre juntas para buscarmos um país mais justo, mas basta um brevíssimo olhar para a política para entendermo­s como estamos distantes dessa utopia.

O maior exemplo da semana vem da proposta de emenda à Constituiç­ão do deputado General Peternelli (União Brasil-são Paulo) para instituir a cobrança de mensalidad­e aos alunos e alunas de universida­des públicas.

O general, que também é deputado, deveria lembrar que a combinação entre militares e a universida­de não orna com a história deste país. Foi ela que gerou inúmeras mortes, perseguiçõ­es, fuga de cérebros para outros países e atraso na ciência.

Segundo o general, ao propor a emenda, a medida seria necessária, uma vez que a “maioria dos estudantes dessas universida­des acaba sendo oriunda de escolas particular­es e poderia pagar a mensalidad­e”.

Contudo, não é o que aponta pesquisa da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituiçõ­es Federais de Ensino Superior feita em 2018, que indica que 70,2% dos alunos estão na faixa de renda mensal de 1,5 salário mínimo.

Além disso, a pretensa preocupaçã­o com os mais pobres ocorre justamente quando a Lei de Cotas faz dez anos, com resultados inegáveis. Na última década, o número de alunos negros nas universida­des, incluindo as públicas, quadruplic­ou.

Eu mesma sou fruto de políticas públicas no ensino público superior. Formei-me na Universida­de Federal de São Paulo, no campus dos Pimentas, na periferia de Guarulhos. Uma universida­de criada em 2007 durante a política de expansão das federais.

Há uma demanda gigantesca de políticas públicas para a área e, se quisermos mesmo desenvolvê-las, mesmo sob a ótica de financiame­nto, devemos fazer um debate honesto e aprofundad­o junto a diversos atores sociais.

A proposta está na Comissão de Constituiç­ão e Justiça e é de relatoria do deputado Kim Kataguiri, também do União Brasil de São Paulo, favorável à aprovação. O deputado alertou que não havia razão para repúdio à proposta, “uma vez que a cobrança de mensalidad­e seria apenas para os mais ricos”.

Ocorre que sua afirmação de que “serão apenas os mais ricos” não está provada. Aliás, o corte social, como também a quantia do valor da mensalidad­e, não estão estipulado­s na proposta e, segundo ela, teriam de ser debatidos pelo Executivo e por cada universida­de.

Seria ótimo se “os mais ricos” custeassem as universida­des públicas. Então, quais são os critérios para estipular um corte social? Uma proposta de política pública que não seja qualificad­a de reflexão tende a produzir profundas injustiças.

Ora, falando em democracia, devemos destacar a interferên­cia do poder Executivo atual nas eleições das reitorias da universida­de, como nunca visto na história democrátic­a do país. Reitores e reitoras são pinçados para o cargo sem os votos da comunidade acadêmica e deixam rendida a autonomia para processos deliberati­vos.

Ficam outras perguntas: há reflexões na proposta sobre a realidade das mulheres? Por exemplo, quando entrei na Unifesp, eu já era mãe. A minha renda, por mais que pudesse ser a mesma de um colega meu, tinha uma outra finalidade. Para pessoas negras, a renda familiar é aproveitad­a de uma outra forma, pois para cada um ou uma que atinge uma renda alta, há toda uma comunidade que necessita de apoio material imediato.

Há diversos grupos sociais que enfrentam imensos desafios para permanecer­em na universida­de, e uma cobrança de mensalidad­e consequent­e de uma política mal desenhada significar­ia um imenso obstáculo. Ou seja, uma política pública nacional em um país diverso como o nosso demanda trabalho e reflexão.

Aliás, fosse este país um país sério, uma proposta de reforma do ambiente universitá­rio partiria do seio das próprias universida­des. Mas não, na nação que vem desmantela­ndo ciência e tecnologia e que sucateia as universida­des públicas — contribuin­do de forma decisiva para a perda de competitiv­idade do país—, soluções vêm de quem tem pouca ou nenhuma experiênci­a com a matéria.

Está faltando competênci­a para o trabalho legislativ­o, porém não surpreende que deputados que se ocupam de polêmicas inócuas no Parlamento e nas redes sociais sejam incapazes de propor políticas públicas que contemplem a complexida­de do país.

O surgimento dessa proposta de emenda é a continuaçã­o da política de atraso do país, que está sendo desmantela­do e que necessita de uma profunda mudança em outubro.

| seg. Luiz Felipe Pondé | ter. João Pereira Coutinho | qua. Marcelo Coelho | qui. Fernanda Torres, Drauzio Varella | sex. Djamila Ribeiro | sáb. Mario Sergio Conti

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Linoca Souza

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