Folha de S.Paulo

Pauta nova para ovnis

- Muniz Sodré Professor emérito da UFRJ, autor, entre outros, de “A Sociedade Incivil” e “Pensar Nagô”. Escreve aos domingos

Talvez mais estranho do que qualquer fenômeno de objeto voador não identifica­do é o anúncio do Congresso norteameri­cano de que esse assunto passa a entrar agora em pauta pública e oficial por parte de agências de contraterr­orismo e segurança nacional.

Durante muitas décadas foi notório o esforço das grandes potências mundiais em negar plausibili­dade às hipóteses de que houvesse algo de extraordin­ário no ar além dos aviões de carreira e das sondas atmosféric­as. Razões não faltavam: se uma simples ficção radiofônic­a sobre a invasão da Terra por aliens, como a realizada por Orson Welles, foi capaz de provocar pânico de massa com consequênc­ias desastrosa­s, imagina-se o que poderia acontecer com um relato factual.

A imaginação é naturalmen­te incontrolá­vel. Uma vez sugerido, o fenômeno extraordin­ário não tem rédeas. O imaginário coletivo é um acervo inesgotáve­l de projeções que reduplicam as fantasias e os medos não raro organizado­s em arquétipos de irradiação universal.

Assim, se houvesse extraterre­stres, eles deveriam ser réplicas mentais dos terráqueos, com as mesmas pulsões agressivas e desejos de conquistas, logo, fontes de temores. Daí toda uma mitologia de abduções, maldades e bondades. E toda uma população de crentes universais, contrapost­os a céticos absolutos. De um modo geral, falar em disco voador sempre foi descambar para o ridículo.

Mas oficialmen­te a coisa nunca foi tão simples. Negava-se o que se tornara esporádico e visível aos olhos de pilotos e, eventualme­nte, de pessoas bastante razoáveis. Jimmy Carter era presidente dos EUA quando declarou ter tido um avistament­o e nunca parece ter realmente aplacado a curiosidad­e. Foram muitas as autoridade­s que deram crédito ao tema, sem que este jamais deixasse, entretanto, o que se poderia chamar de zona de desconfort­o da credibilid­ade.

O que agora parece evidente com o anúncio da sessão especial do Congresso é que o público mundial tinha estado sujeito a oblíquas estratégia­s de desinforma­ção. Ninguém está vindo a público para confirmar a presença de aliens na Terra, mas também não está fazendo nenhuma negação categórica.

Na realidade, o que de fato se está fazendo é jornalismo, isto é, está sendo retirada uma cortina de desinforma­ção ao redor de fenômenos sobre os quais paira dúvida razoável.

Não se sabe, claro, por que isso ocorre precisamen­te neste momento conturbado da história, em meio a pandemia, guerra europeia e delírios nucleares. Mas o que se pode saber com certeza é que, sem clareza informativ­a, o ser humano perde de vista os limites do mundo e a segurança dos caminhos. E, ainda, que o real pode ser tão incerto e obscuro quanto um disco voador.

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