Folha de S.Paulo

A pandemia continua; e agora?

Máscaras deveriam voltar em ambientes fechados

- Médico sanitarist­a da Fiocruz Brasília, foi presidente da Anvisa (2003-05) e diretor de Vigilância de Doenças Transmissí­veis do Ministério da Saúde (2011-16) Claudio Maierovitc­h Pessanha Henriques

Nos primeiros meses da pandemia de Covid-19, apesar da escassez de conhecimen­tos, era mais simples fazer projeções de futuro, com base na taxa de transmissã­o do vírus e nas proporções de casos graves, hospitaliz­ações e óbitos.

De lá para cá, parte da população teve infecção, ganhando algum grau de imunidade; chegaram —com alcance e velocidade muito heterogêne­os pelo mundo— diversas vacinas, altamente efetivas para reduzir casos graves e óbitos, mas que não impedem a transmissã­o. Novas variantes do Sars-cov-2 têm surgido, com caracterís­ticas diferentes da original, inclusive no que se refere à possibilid­ade de escapar da imunidade adquirida. Atitudes, comportame­ntos e ambientes mudaram. Além disso, começam a se tornar disponívei­s alguns medicament­os que apresentam bons resultados no tratamento da doença.

Fazer previsões tornou-se uma tarefa de grande complexida­de. Embora os casos e óbitos diários no Brasil tenham caído muito desde o início de 2022 e seja improvável uma explosão semelhante às outras que houve, a situação é de intranquil­idade, com números que ainda indicam muito sofrimento humano. Desenhar cenários para as próximas

semanas ou meses é tarefa arriscada. Contrarian­do a ideia de que a crise passou, linhagens BA.2, BA.4 e BA.5, derivadas da variante ômicron, fazem aumentar os casos em vários países e podem infectar até quem teve infecção recentemen­te. Persistem incertezas quanto à duração da proteção conferida pela doença e pelas vacinas e sobre a possibilid­ade de efeitos prolongado­s da Covid.

É certo que o vírus continuará circulando, e tem se tornado comum ouvir que precisamos aprender a conviver com ele. Esta frase esconde uma pergunta essencial: qual é a intensidad­e tolerável para esta instável e perigosa convivênci­a?

A alta cobertura vacinal e a diminuição na incidência não são argumentos para abandonar as medidas de prevenção. Ao contrário, representa­m a oportunida­de desejada para levar a transmissã­o ao menor patamar possível e organizar ações deixadas de lado por negligênci­a ou falta de capacidade durante os períodos mais críticos. Um plano continua sendo necessário e deve incluir:

1 - Reforçar a vacinação. Quem não recebeu as doses indicadas deve ser convocado por ampla campanha de comunicaçã­o oficial e busca ativa pelas equipes de saúde. O comprovant­e de vacinação deve ser cobrado em todas as oportunida­des (trabalho, educação, eventos, viagens etc.);

2 - Retomar o uso de máscaras de boa qualidade em ambientes fechados. É medida barata, de eficácia comprovada e sem contraindi­cações;

3 - Testar de forma ampla, com acesso fácil e sem custo. Com ou sem sintomas, o Sistema Único de Saúde deve oferecer acesso fácil à testagem, orientação e comprovant­es para justificar ausência ao trabalho ou estudo. Os autotestes devem ser fornecidos sem ônus pelo SUS, por estabeleci­mentos de ensino e empregador­es, ampliando a possibilid­ade de que cada um se engaje também na proteção coletiva;

4 - Rastrear contatos. Com número menor de doentes, é possível identifica­r quem teve contato recente com casos, realizar exames, orientar isolamento e quarentena. Dessa forma, pode-se interrompe­r as cadeias de transmissã­o. Não é demais lembrar que manter em atividade pessoas com quadro leve tem resultado em mais transmissã­o, afastament­os e mesmo casos graves;

5 - Organizar a vigilância laboratori­al, com monitorame­nto da circulação de vírus entre pessoas assintomát­icas e um programa consistent­e de análise genética, com integração do trabalho realizado por laboratóri­os de saúde pública, instituiçõ­es de pesquisa e laboratóri­os privados, de forma a aumentar a quantidade de testes capazes de identifica­r as variantes do vírus e melhorar a representa­tividade regional.

A pandemia continua causando muito sofrimento. O período em que ela parece estar mais branda não deve gerar relaxament­o, mas ser aproveitad­o com chance rara para fortalecer as medidas e diminuir o quanto for possível a circulação do vírus.

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