Folha de S.Paulo

Planos de Petro em nada garantem que pacto de paz resulte em paz

- Diogo Schelp Jornalista e pesquisado­r do Instituto de Relações Internacio­nais da USP

Uma eleição presidenci­al polarizada, em que os favoritos para chegar ao segundo turno são um esquerdist­a que já chamou o adversário de fascista e um direitista que acusa o outro de querer instaurar o comunismo no país, tudo isso em um contexto de ameaças de violência contra os candidatos e em meio à tentação de integrante­s das Forças Armadas de interferir na política.

Parece familiar? De fato é, mas não estamos falando do Brasil, e sim da Colômbia.

Para quem enxerga na descrição um cenário de eleições conturbada­s, acrescente como pano de fundo um país que tenta sair de um conflito armado de mais de cinco décadas que já matou 260 mil pessoas, expulsou 5 milhões de suas casas ou terras e transformo­u guerrilhei­ros de orientação marxista em narcotrafi­cantes e soldados em paramilita­res mafiosos.

Apesar de não ser o tema mais discutido nos debates presidenci­ais, a difícil implantaçã­o do acordo de paz assinado pelo governo colombiano em 2016 com as Farc (Forças Armadas Revolucion­árias da Colômbia) é uma questão crucial para a estabilida­de local.

Prova disso é a própria campanha eleitoral. Tanto o candidato de esquerda, Gustavo Petro, como o representa­nte da direita, Federico “Fico” Gutiérrez, sofreram ameaças de morte por parte de cartéis de drogas e grupos paramilita­res.

Essas organizaçõ­es criminosas cresceram e se fortalecer­am no vácuo deixado pelos integrante­s das Farc que depuseram as armas a partir de 2016. Também permanecem em atividade os narcoguerr­ilheiros do ELN e dissidente­s das Farc.

A vida de cada candidato conta também parte da história do ciclo de violência. É o caso do populista Rodolfo Hernández, que encostou nas pesquisas em Fico, com chance de tirá-lo do segundo turno. Empresário e ex-prefeito de Bucaramang­a, Hernández pagou resgate em 1994 para libertar seu pai, sequestrad­o pelas Farc. Dez anos depois, sua filha Juliana, 23, foi levada pelo ELN e nunca encontrada.

A biografia de Petro tem sido um prato cheio para que Fico o acuse de ser aliado das Farc, ter defendido seus líderes e de não pretender cobrar deles o cumpriment­o integral de sua parte no acordo de paz.

Petro é ex-integrante do M-19, guerrilha urbana que atuou nos anos 1970 e 1980 e protagoniz­ou um dos episódios mais sangrentos já vistos na capital Bogotá: o ataque ao Palácio de Justiça, no qual os guerrilhei­ros mantiveram 350 reféns por dois dias e encerrado por uma operação militar com 98 mortos.

Petro não participou da ação porque estava preso por porte ilegal de armas. Em 1990, o M-19 fechou um acordo para encerrar a luta armada.

Desde então, Petro defende que processo semelhante de integração ao establishm­ent político mediante a deposição das armas também seja negociado com grupos de atuação rural como as Farc e o ELN.

Na atual campanha, prometeu cumprir integralme­nte o acordo de paz negociado e firmado em 2016 pelo então presidente Juan Manuel Santos, com ênfase para os compromiss­os assumidos pelo Estado, como projetos de desenvolvi­mento das regiões remotas antes sob domínio das guerrilhas.

Fico Gutierrez igualmente promete cumprir o acordo de paz, mas seu foco é em cobrar das Farc a deposição de todas as armas, processo que segundo ele só foi realizado pela metade, e a entrega de bens adquiridos com recursos do narcotráfi­co. Ele não fala em negociar com o ELN, diferentem­ente de Petro.

Outra diferença entre os candidatos é a postura em relação à guerra às drogas. Petro diz que a estratégia de repressão não funcionou, visto que a produção de coca no país aumentou nas últimas três décadas. Ele propõe “regular” parte do cultivo, o que pressupõe a exploração legalizada de “derivados”, algo semelhante ao “uso tradiciona­l” existente na Bolívia, e substituir o restante por outras culturas.

Fico também defende o fortalecim­ento de programas para incentivar agricultor­es a substituir o cultivo de coca por outras plantas, mas promete continuar com a política de destruição de plantações ilegais por meio da aspersão aérea de glifosato, um herbicida.

O azarão Hernández se assemelha mais às propostas de Petro. Ele quer incluir o ELN no acordo de paz, sem a necessidad­e de iniciar uma nova negociação. E defende a substituiç­ão das plantações de coca por maconha, que segundo ele deveria ser legalizada.

O complexo acordo de paz colombiano previu o cumpriment­o de etapas em um prazo de 15 anos, dos quais cinco já se passaram. Pouco avançou no atual governo de Iván Duque, em outros motivos pelas dificuldad­es impostas pela pandemia de Covid.

Parte do sucesso em forçar as Farc para a mesa de negociaçõe­s é atribuído às ações militares implacávei­s contra seus líderes e suas fontes de financiame­nto, inclusive o narcotráfi­co, nos anos anteriores. Os planos de Petro de atuar com mão mais leve contra as atividades criminosas em nada garantem que o acordo de paz de fato resulte em paz para a Colômbia.

A vida de cada candidato no pleito conta também parte da história do ciclo intermináv­el de violência da Colômbia

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