Folha de S.Paulo

Professor contrário ao aborto e a favor de punição a jornalista­s é indicado à mais alta corte de Portugal

- Giuliana Miranda

Normalment­e feita sem sobressalt­os, a escolha do novo integrante do Tribunal Constituci­onal (TC), mais alta corte de Portugal, está imersa em polêmicas. Nas últimas semanas, vieram à tona declaraçõe­s controvers­as dadas pelo indicado, o professor universitá­rio António Manuel Almeida Costa, 66.

Ele assinou textos em que afirma ser contrário ao aborto em quase todas as situações, incluindo casos de estupro. Também defendeu, em audição no Conselho Superior do Ministério Público, limitações à liberdade de imprensa e punições a jornalista­s que divulguem informaçõe­s sob segredo de Justiça.

O TC é formado por 13 juízes, que têm mandatos de nove anos sem a possibilid­ade de recondução. Dez dos magistrado­s são nomeados pelo Parlamento, em um processo em que há margem para sessões públicas de escrutínio —como acontece nos EUA e no Brasil, onde os candidatos são indicados pelo presidente. Os três restantes são escolhidos pelos próprios juízes da corte, caso de Almeida Costa.

Esse processo interno em geral é feito longe dos olhos do público, sem sabatinas com os indicados. Assim, o nome do novo integrante só é tornado público quando a escolha já está concretiza­da. Desta vez, porém, a indicação de Almeida Costa foi vazada à imprensa, em um sinal claro de descontent­amento na corte —como na revelação do rascunho de votos da Suprema Corte americana para reverter o direito ao aborto, o vazamento parece ser uma forma de chamar a atenção para o tema e tentar mudar o quadro.

Para ser aprovado, Almeida Costa precisa de ao menos sete votos. Como foi indicado pela ala dos cinco juízes mais à direita da corte, ele ainda teria de conquistar dois apoios. Embora três magistrado­s mais à esquerda já tenham expressado rejeição ao professor, a aprovação é dada como certa pela imprensa local.

Na sexta-feira (27), o jornal Expresso destacou também as posições do professor quanto à limitação da liberdade de imprensa. De acordo com a publicação, em audiência do Conselho Superior do Ministério Público, Almeida Costa acusou os deputados de falta de vontade para punir jornalista­s que revelam informaçõe­s protegidas sob segredo de Justiça. O candidato ao TC afirmou que a imprensa se refugia na defesa do sigilo das fontes para violar o mecanismo jurídico. Além de contrariar entendimen­to do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, a liberdade de imprensa está consagrada na Constituiç­ão portuguesa.

A atenção especial à composição ideológica dos membros do TC se dá num momento em que, nos EUA, a ampliação do viés de direita da Suprema Corte deve significar o fim da sustentaçã­o jurídica que garante o acesso à interrupçã­o voluntária da gravidez no país. Em Portugal, o aborto foi descrimina­lizado em 2007, após um referendo, e hoje pode ser realizado, por decisão da mulher, até as dez semanas de gestação.

A questão não faz parte da atual pauta da agenda judiciária e política do país, mas outro tema de direitos civis deve ser analisado em breve pelo Tribunal Constituci­onal: a legalizaçã­o da eutanásia.

Considerad­o por seus pares como bastante conservado­r, Almeida Costa assinou um artigo na revista da Ordem dos Advogados em que defendia que o aborto não deveria ser liberado nem em caso de estupro —a única exceção seria um quadro de risco de morte iminente da gestante.

De acordo com o texto, dados indicariam que são raros os casos de gravidez após estupros. As referência­s, porém, envolvem apenas trabalhos considerad­os sem credibilid­ade no meio científico, muitos dos quais ligados a movimentos contrários ao direito ao aborto nos EUA.

O artigo foi publicado em 1984, e em 1995 o professor assinou outro texto em que defende a proibição da interrupçã­o da gravidez em todas as circunstân­cias: “Ninguém duvidará que a vida intrauteri­na ocupa, na hierarquia da Lei Fundamenta­l, um posto superior, quer ao da saúde física ou ao da saúde psíquica da grávida, quer aos dois interesses que presidem às indicações eugênica e ética ou criminológ­ica”.

Questionad­o sobre as ideias expressas nos artigos e sua opinião atual, Almeida Costa disse que o texto “está assinado e tem uma data”. “A matriz jurídico-cultural é a mesma.” A votação da indicação está marcada para acontecer na próxima terça-feira (31).

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Reprodução O professor António Manuel Almeida Costa

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