Folha de S.Paulo

Davos abdica de vocação para debater soluções e encampa defesa da Ucrânia

Invasão russa monopoliza discussões no Fórum Econômico Mundial com mínima dissonânci­a

- Luciana Coelho

“Uma potência nuclear está se comportand­o como se tivesse o direito de redesenhar fronteiras. [Vladimir] Putin quer retorno a um mundo no qual a força determina o que é certo

Olaf Scholz premiê alemão, em discurso em Davos

DAVOS A expectativ­a em torno da retoma dado encontro anual do Fórum Econômico Mundial em da vos, adiado em janeiro de 2021 e novamente no início deste ano devido à pandemia, era grande. Clima, economia, sustentabi­lidade, inclusão, revolução no mercado de trabalho —estava tudo na pauta.

A Guerra da Ucrânia, porém, ofuscou não só os debates como os humores e os prognóstic­os do evento, que acabou tendo menos quórum neste ano (muitos convidados com Covid não puderam comparecer, e a agenda mais atribulada de maio, na comparação com janeiro, foi outro percalço ).

Diferentem­ente do que houve em outras crises, contudo, D avos abdicou desu avocação de espaço paras e debater a solução de crises e problemas globais e encampou a defesa do governo da Ucrânia.

Começou com o presidente Volodimir Zelenski, fazendo por vídeo o primeiro discurso no espaço no bredo evento e comparando a invasão de seu país com os estopins da Primeira e da Segunda Guerras Mundiais; terminou com o prefeito de Kiev, Vitali Klitschko, no centro da entrevista coletiva final do encontro, conclamand­o ação contra uma guerra “sem regras”.

Seus apelos foram reforçados por parlamenta­res, jornalista­s e ativistas ucranianos, tratados como estrelas pela organizaçã­o. E não faltou quem os ecoasse. “Uma potência nuclear está se comportand­o como se tivesse o direito de redesenhar fronteiras. [Vladimir] Putin quer o retorno a um mundo no qual aforça determina oqueécerto”, dis se o premiê alemão, Olaf Scholz, em seu discurso na quinta (26).

“Não é só a existência da Ucrânia como Estado que está em jogo. Todo o sistema de cooperação internacio­nal criado depois de duas guerras mundiais devastador­as para impedir que nunca mais isso acontecess­e está em jogo.”

Antes, na terça-feira, a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, ressaltou que a União Europeia, pela primeira vez na história, estava prestando ajuda militar e econômica a um país (o qual, aliás, não integra o bloco).

A mínima dissonânci­a nos mais de 450 painéis veio do quase centenário Henry Kissinger, ex-secretário de Estado americano que já viveu muitas guerras e participou do debate por telão, advertindo que a negociação entre as partes é urgente e deveria incluir a cessão de território por Kiev. Apoiou os ucranianos, mas sugeriu que os demais governos reduzam a pressão sobre Moscou.

Entre os 107 países de alguma forma representa­dos no evento, a Rússia, outrora um participan­te ativo, nem sequer constava. A Casa da Rússia, sempre uma das maiores atrações da avenida principal de Davos, desaparece­u, e no local foi aberta a Casa dos Crimes de Guerra da Rússia.

A China, aliada da Rússia, pouco se fez presente: os estritos controles antipandêm­icos de Pequim e Xangai impediram uma participaç­ão mais vultosa, como em outros anos.

Os debates sobre economia também foram atravessad­os pela guerra. Porque a Rússia é um dos principais exportador­es de petróleo e gás do mundo, porque é um dos principais produtores de fertilizan­tes e porque o conflito entre os dois países, grandes produtores de grãos, energia e comida, encareceu esses itens bruscament­e desde o início da guerra.

As altas alavancara­m a inflação mundo afora, mesmo em países que desconhece­m o fenômeno, como a Suíça, e economista­s e especialis­tas no Fórum alertaram para o risco real de faltar alimentos nas nações pobres e energia nas ricas.

Dívidas soberanas cresceram, as cadeias de fornecimen­to sofreram interrupçõ­es, e o comércio global retraiu. Em suma, a globalizaç­ão estancou, e o planeta está à beira de uma nova crise devido à guerra, ainda mal saído do caos da pandemia. Correta ou não, não é a visão que prevalece na América Latina, na Ásia e na África. E mesmo nos EUA o impacto é dimensiona­do com mais nuances.

Mas as restrições sanitárias e o timing reduziram essas delegações, como observaram participan­tes com os quais a Folha conversou, tornando um evento que nos últimos anos vinha diversific­ando os convidados essencialm­ente europeu. Logo, vizinho à guerra.

E, como ressaltou Scholz, há o temor de que todo o sistema desenhado após 1945 colapse, ensejando um redesenho da paisagem internacio­nal e, como observou o ministro Paulo Guedes, uma reorganiza­ção das relações econômicas entre os países. Não é pouco.

 ?? Fabrice Coffrini - 23.mai.22/afp ?? O presidente ucraniano, Volodimir Zelenski, em discurso por videoconfe­rência no fórum econônico de Davos
Fabrice Coffrini - 23.mai.22/afp O presidente ucraniano, Volodimir Zelenski, em discurso por videoconfe­rência no fórum econônico de Davos

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