Folha de S.Paulo

Raphael Vicente

Ainda temos dificuldad­e de compreende­r o que é racismo no Brasil

- Joana Cunha painelsa@grupofolha.com.br

A morte de Genivaldo Santos, asfixiado em uma viatura em Sergipe, repercutiu no exterior com analogias a George Floyd, assassinad­o em Minnesota, nos EUA, em 2020. Na época, em meio aos protestos de rua, uma série de presidente­s de empresas escreveu cartas públicas para apoiar o movimento contra o racismo e a violência policial.

Por aqui, no entanto, as manifestaç­ões não devem se repetir, segundo a expectativ­a de Raphael Vicente, diretorger­al da Iniciativa Empresaria­l pela Igualdade Racial, que reúne grandes companhias em torno do tema. “Acho difícil qualquer movimento no Brasil ser próximo do que aconteceu no caso George Floyd”, diz.

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O assassinat­o na viatura em Sergipe na semana passada foi comparado, no exterior, a George Floyd. Naquele caso, muitos presidente­s de empresas, de big techs a bancos de Wall Street, divulgaram posicionam­entos contra o racismo e a violência policial. Esse novo caso no Brasil tem potencial para gerar uma onda de manifestaç­ões corporativ­as?

Acho muito difícil qualquer movimento no Brasil ser próximo do que aconteceu no caso George Floyd. A gente ainda tem muita dificuldad­e em compreende­r, até pelo nosso histórico, o que é e como funciona o racismo no tecido social.

É só ouvir a argumentaç­ão dos que defendem a atitude da polícia. É a velha história: atribuem a problema social, econômico, de violência, de segurança, mas não a um problema racial. Quando não se compreende isso, fica difícil.

Se o caso George Floyd tivesse acontecido no Brasil, não teria havido aquela repercussã­o. Como não tem com tantos casos semelhante­s. O que chegou mais próximo foi o do João Alberto, no Carrefour. Criança morta em casa por ação da polícia também não gera aquela comoção.

Por que é tão importante ter um movimento antirracis­ta partindo do mundo corporativ­o?

Porque é preciso ter tomada de decisão, ter posicionam­ento. O poder público tem obrigação de se mobilizar. A iniciativa privada tem a responsabi­lidade, mas não a obrigação legal de se manifestar. Mas quando eles se manifestam com aquela veemência é porque houve uma compreensã­o de que há um problema social e que atinge inclusive os negócios.

Então, todos têm que se movimentar para produzir soluções. Quando se compreende isso como uma questão de negócio, de imagem, de sustentabi­lidade, quando se compreende que essas distorções sociais causam distorções no negócio a médio e longo prazo, aí vem a manifestaç­ão.

O assassinat­o de João Alberto, espancado por seguranças no estacionam­ento do Carrefour, aconteceu dentro de um ambiente privado. Isso faz diferença no engajament­o das empresas?

Acontecer no ambiente privado também não é algo novo. O que mudou foi justamente essa compreensã­o. A questão é que nossa sociedade como um todo, veículos de comunicaçã­o, parte importante dos intelectua­is, está começando a compreende­r a questão racial.

No caso do João Alberto foi muito simbólico porque foi na véspera do Dia da Consciênci­a Negra. As imagens são fortes, bizarras, desumanas. Independen­temente de você compreende­r o racismo, provoca indignação. Isso contribui.

Acho que muitas empresas compreende­ram o potencial de perdas, de vida, de imagem, de recursos e se mexeram a partir disso. Logo depois, teve manifestaç­ões de empresas fornecedor­as do Carrefour condenando a ação, exigindo medidas. Tem que compreende­r que, no fim das contas, empresas, governos, sociedade, indivíduos estão todos no mesmo barco. Veja o resultado: cliente morto, funcionári­os demitidos, presos, processado­s, dano à empresa. Poderia ter sido evitado.

Como está a Iniciativa Empresaria­l pela Igualdade Racial?

É um movimento que reúne empresas pela promoção da diversidad­e étnico-racial no mercado de trabalho. A gente trabalha com grandes companhias. Elas dão sinais, dão o sentido do que as grandes empresas estão fazendo, ou seja, dão referência­s. E elas têm uma grande cadeia de valor, ou seja, se é importante para a empresa, precisa ser importante para a sua cadeia de valor.

O esforço com organizaçõ­es que estão comprometi­das com a diversidad­e é compreende­r esse cenário. Para trazer ações propositiv­as, a gente precisa sentar à mesa com todo mundo, poder público, grandes e médias empresas, escola, para construir caminhos e conseguir superar o racismo, porque ele foi construído. Ele não é natural. Então, pode ser desconstru­ído.

E o debate sobre a revisão da Lei de Cotas neste ano? Como as empresas estão se posicionan­do e qual é o papel delas nesse tema?

Conversamo­s bastante com as empresas no ano passado sobre essa compreensã­o. Elas podem e devem se posicionar, cobrar, acionar as representa­ções, principalm­ente porque muitas delas se baseiam justamente nisso para o recrutamen­to de candidatos negros. É parte da base legal. O sistema gira em torno disso.

Essa é uma discussão que foi muito emblemátic­a no meio empresaria­l, mas a gente conseguiu um certo avanço, até com velocidade nesse sentido. Mas no geral a empresa precisa, primeiro, compreende­r o que é, que não é só para negros, é também para indígenas e de escolas públicas.

Não tem jeito. Nesse tema, você tem que se posicionar. Só o discurso não vai resolver. Agora é posicionam­ento.

Raio-x

Advogado e professor da Universida­de Zumbi dos Palmares, Raphael Vicente é diretor-geral da Iniciativa Empresaria­l pela Igualdade Racial, movimento que reúne empresas brasileira­s e multinacio­nais para combater o racismo no ambiente corporativ­o. É também sócio da Vicente Consultori­a, mestre e doutorando pela PUC-SP

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