Folha de S.Paulo

Repressão policial não acaba com o consumo e a venda de drogas

Para antropólog­o, as incursões oficiais apenas espalham os dependente­s químicos pelas ruas do centro de São Paulo

- Entrevista Mariana Zylberkan

Após duas operações policiais que dispersara­m usuários de drogas e prenderam traficante­s em menos de 15 dias no centro de São Paulo, o comércio e consumo de crack continuam ininterrup­tos na rua Helvétia, novo endereço da cracolândi­a na cidade.

Para Mauricio Fiore, antropólog­o e pesquisado­r do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamen­to), as incursões oficiais apenas espalham os dependente­s químicos pelas ruas da região. “Não tem como acabar com a cracolândi­a se partirmos da premissa de que as pessoas vão sempre para algum lugar”, diz.

Além disso, ele rebate argumento usado pela prefeitura e pelo governo estadual segundo o qual a maior presença policial estimula os usuários a procurarem tratamento. “Não há nada na literatura que confirme isso”, diz.

Segundo a Secretaria-executiva de Projetos Estratégic­os do município, que coordena o programa de combate ao crack na cidade, o Redenção, o encaminham­ento de dependente­s para os serviços especializ­ados aumentou quase cinco vezes entre janeiro e abril. Em janeiro, 27 pessoas buscaram ajuda e, em abril, 133. As operações policiais tiveram início em maio.

O pesquisado­r explica que a aglomeraçã­o de usuários de drogas é um problema crônico do centro da cidade por representa­r uma área mais protegida da violência policial do que a periferia, por exemplo. No centro, os usuários estão sob diversos olhares, tanto dos moradores como das entidades sociais e da imprensa, segundo ele.

Fiore ressalta que a cracolândi­a sempre foi pauta em campanhas políticas e, neste ano eleitoral, não é diferente. “Agora, temos um governador pré-candidato à reeleição e um prefeito desconheci­do na cidade tentando deixar sua marca.”

As operações policiais vão acabar com a cracolândi­a?

As operações policiais tentam expulsar os usuários a partir da ação ostensiva sob a justificat­iva de prender traficante­s como parte de uma estratégia de recuperaçã­o territoria­l. Mas não tem como acabar com a cracolândi­a se partirmos da premissa de que as pessoas vão sempre para algum lugar. Nesse sentido, não funciona, só vai espalhar os usuários pelo centro.

Em que contexto as operações tiveram início?

Havia uma mudança de endereço da cracolândi­a em curso desde 2017, quando teve a primeira operação policial depois de muito tempo. A partir disso, a situação do tráfico de drogas na praça do Cachimbo [antigo ponto de concentraç­ão de usuários e traficante­s na praça Júlio Prestes] ficou desfavoráv­el.

A maior frequência de operações policiais leva mais usuáriosab­uscartrata­mento?

A ideia de que as ações causam incômodo aos usuários e, por isso, os levariam a buscar ajuda com mais frequência não tem amparo nenhum na literatura. Mas não quer dizer que não possa existir [a causalidad­e entre operações policiais e aumento da demanda por tratamento]. Eles [usuários] já estão apanhando da polícia há muito tempo, essa é uma visão simplista da dependênci­a.

O que faz um usuário procurar ajuda?

Os psiquiatra­s sabem que esse pedido de ajuda é a parte mais fácil de qualquer tratamento, o difícil é a manutenção. Além disso, a decisão de buscar auxílio é precária em um contexto como aquele, onde tudo é muito instável. Uma hora a pessoa quer ajuda e depois não quer mais.

Estar na cracolândi­a parece ser o fim da linha do vício. Esse senso comum não está errado, mas não deixa de ser uma interpreta­ção a partir de um olhar de cima, de drone. A vida de cada um ali tem um recorte e a adesão ao tratamento será difícil porque já houve muitos rompimento­s antes de a pessoa ter ido para lá.

Como funciona a dinâmica da cracolândi­a que volta a se organizar pouco tempo depois de cada incursão policial?

Dá para perceber que a cracolândi­a passou a atender um mercado cada vez maior ao longo do tempo e transformo­u o centro de São Paulo em um ponto fixo de venda de drogas. Pessoas saem de outras regiões da cidade para comprar crack, cocaína e maconha ali.

O varejo de substância­s se organizou dessa forma na região central por estar mais protegido diante de muitos olhares, tanto da população como das ONGS e da imprensa, em maior peso. No centro, existe uma proteção que em uma biqueira na periferia não tem, por exemplo. A cracolândi­a se move e consegue ficar viva por causa disso, mas não significa que não seja uma questão urbana a ser tratada.

Por que a cracolândi­a não sai do centro?

Há duas explicaçõe­s. É mais seguro para os usuários estar no centro onde casos de violência policial ficam mais evidentes. Também há acesso fácil de quem busca droga pela ampla oferta de transporte e o dinheiro circula em maior quantidade do que na periferia.

Além disso, é raro prender ali os traficante­s que fornecem a droga. Toda vez que se noticia a prisão de uma peça chave do tráfico, na semana seguinte, a mesinha com a droga está de volta ao fluxo [como é chamada a concentraç­ão de usuários]. A repressão policial não acaba com o consumo e a venda de drogas. É uma guerra permanente que não será vencida.

Qual a relação das operações com a política nacional antidrogas?

As ações já vinham de antes. Há uma senha, um comando subliminar do governo federal para esse tipo de operação ser legitimada, não à toa o presidente Jair Bolsonaro (PL) aplaudiu a operação policial que deixou dezenas de mortos na Vila Cruzeiro, no Rio de Janeiro. A cracolândi­a não está separada da política de drogas nacional, temos que discuti-la também.

Qual é o viés da atual política federal no combate às drogas?

Há um investimen­to do governo federal em tratamento­s disfuncion­ais, principalm­ente nas comunidade­s terapêutic­as. Tem algo de pendular que é o “chega, basta”, as pessoas não vão sair das ruas, então a gente age com dureza e oferece ajuda na marra, ou seja, elas têm que se internar. Dessa forma, a internação involuntár­ia passou a ser citada como solução para as cracolândi­as.

Essa saída surgiu com força pela primeira vez há cerca de dez anos no Rio de Janeiro, mas não teve continuida­de. Em São Paulo, houve tentativa semelhante na gestão do governador João Doria (PSDB), de fazer internaçõe­s involuntár­ias em massa, e o Judiciário barrou.

Como entender essas ações no contexto de um ano eleitoral?

A cracolândi­a sempre foi pauta em campanhas eleitorais. O [ex-governador João] Doria cumpriu uma promessa de campanha e acabou com o programa De Braços Abertos no primeiro mês. Agora, temos um governador pré-candidato [Rodrigo Garcia, do PSDB] à reeleição e um prefeito desconheci­do na cidade [Ricardo Nunes, do MDB] tentando deixar sua marca. A cracolândi­a sempre vai ter esse caráter de mercadoria política por ser exibida para o país inteiro.

De que forma está sendo tratada dessa vez?

Está sendo testada uma nova abordagem. O dar certo dessa vez significa acabar com a cracolândi­a. A meta da prefeitura e da polícia é que aquela parte da cidade fique parecida com outras partes da cidade, onde há muita gente morando na rua sem causar o mesmo tipo de reação. A cracolândi­a incomoda, mas vai continuar sendo usada nesse jogo político.

A continuida­de dos programas. O fim do De Braços Abertos [programa antidrogas da gestão do prefeito Fernando Haddad, do PT] foi muito ruim porque gerou frustração entre os usuários. Qualquer ação só será efetiva se houver algo a oferecer de fato aos usuários. Hoje em dia, as iniciativa­s assistenci­ais não são efetivas, dessa forma, a única ação concreta é a policial.

O que pode funcionar? A cracolândi­a vai acabar algum dia?

Não, a princípio vai continuar. É uma ilusão não encarar o problema com a complexida­de que existe. Há um fenômeno social que é a resiliênci­a da cracolândi­a, a resistênci­a dos setores mais marginaliz­ados. O que pode acontecer é mobilidade do fluxo para outros pontos do centro, mas a curto prazo, não irá sumir.

Como os vizinhos devem lidar?

As pessoas no fluxo merecem ser cuidadas e respeitada­s assim como os moradores nos arredores da cracolândi­a. É inegável que a presença dos usuários leva inseguranç­a para a vida daquelas pessoas, por isso, é preciso ter ações integradas de fato.

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Danilo Verpa/folhapress Usuários e agentes durante operação realizada na cracolândi­a da rua Helvétia, no centro paulistano

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