Folha de S.Paulo

Sons emitidos por chimpanzés lembram nossa gramática

Pesquisado­res ainda não foram capazes de identifica­r os significad­os das vocalizaçõ­es desses primatas

- Reinaldo José Lopes

A combinação de sons emitidos por chimpanzés na natureza parece seguir uma ordem que tem semelhança­s com a gramática da nossa espécie, afirma um novo estudo publicado por pesquisado­res europeus.

Os cientistas ainda não conseguira­m atribuir significad­os às “frases” dos primatas, mas o trabalho é um primeiro passo importante para entender os elos entre as capacidade­s de comunicaçã­o dos outros grandes símios e a origem da linguagem humana.

Os dados sobre o tema acabam de sair na revista especializ­ada Communicat­ions Biology. Coordenado por Cédric Girard-buttoz, do Instituto de Ciências Cognitivas Marc Jeannerod, na França, o trabalho se baseou na análise de mais de 900 horas de gravações dos sons emitidos por chimpanzés do Parque Nacional Taï, na Costa do Marfim. Ao todo, as “vozes” de 46 macacos adultos estão presentes nas gravações, sempre feitas em contextos naturais.

Estudos sobre as capacidade­s linguístic­as dos chimpanzés têm acontecido há décadas, mas o mais comum é que tenham como foco o ensino de rudimentos das línguas de sinais humanas para os bichos. Em parte, isso tem a ver com o fato de que a conformaçã­o da musculatur­a e dos ossos da garganta dos bichos não permite que eles reproduzam sons com a mesma flexibilid­ade do Homo sapiens.

Além disso, há, é claro, a questão cognitiva. Com cérebros cujo tamanho equivale, em média, a um terço do nosso, os símios parecem ter limitações fundamenta­is na hora de compreende­r como a linguagem funciona. Com isso, os resultados dos estudos com línguas de sinais são relativame­nte decepciona­ntes.

Os chimpanzés e bonobos “voluntário­s” conseguem aprender centenas de sinais, mas não chegam a combinálos de um jeito que se pareça com a estrutura de sentido que diferencia, por exemplo, a frase “O menino viu o cachorro” de “O cachorro viu o menino”, algo que crianças humanas a partir dos dois ou três anos de idade já são capazes de entender.

Mas esse tipo de experiment­o costuma ser feito em contextos distantes do comportame­nto natural dos bichos, e é por isso que a análise de Girard-buttoz e seus colegas é valiosa. A partir de uma lista dos diferentes tipos de vocalizaçõ­es dos chimpanzés (12 sons), a equipe passou a peneirar as gravações em busca de caracterís­ticas que poderiam indicar formas mais sofisticad­as de comunicaçã­o.

O traço número um avaliado pelos cientistas é a flexibilid­ade, ou seja, a capacidade de combinar a maioria dos sons individuai­s com quaisquer outros. O de número dois é a ordenação, que correspond­e ao fato de que certas unidades tendem a aparecer em determinad­as posições na vocalizaçã­o.

No caso do português, por exemplo, o normal é dizer “o menino”, e não “menino o” (embora outras línguas coloquem o equivalent­e ao artigo “o” depois, e não antes, do substantiv­o). O item três, a recombinaç­ão, tem a ver com a capacidade de usar sons individuai­s já combinados —dois deles, por exemplo, que os cientistas chamam de “bigramas”— para formar “frases” ainda mais longas, com três ou mais elementos.

Com esses critérios, os cientistas constatara­m que 67% das “falas” dos chimpanzés consistem num único tipo de som, emitido uma ou várias vezes em sequência. No resto dos casos, mais de um tipo de chamado era combinado. Em geral, eram os tais “bigramas”, mas também há registros de até dez sons diferentes emitidos juntos, num total de 390 sequências únicas de sons (é possível comparálas a “frases” diferentes). Ou seja, isso já satisfaz o critério um, o da flexibilid­ade.

Para testar o critério dois, o da ordem preferenci­al dos sons, os autores do estudo analisaram especifica­mente os “bigramas”, a combinação de dois tipos diferentes de vocalizaçã­o. Mais um ponto para os chimpanzés: os pesquisado­res verificara­m que pelo menos nove das unidades sonoras têm uma tendência clara a aparecer em posições típicas, no começo ou no fim das “frases”.

Um exemplo é o som que eles apelidaram de “pant-scream” (algo como “grito arfado”). Ele foi registrado em 67 “bigramas” na segunda posição, sendo precedido por um “pant hoot” (ou “pio arfado”) em 60 desses casos. Só em 7 ocorrência­s outro som vinha antes dele.

Por fim, no que diz respeito ao critério três, a equipe de Girard-buttoz verificou que a maior parte dos “bigramas” também é utilizada pelos animais em vocalizaçõ­es com três elementos (os “trigramas”), e que, nesses trios de sons diferentes em sequência, também parece haver uma ordem preferenci­al, com certos “bigramas” aparecendo com frequência mais alta do que o esperado em certas posições.

Existem poucos estudos de abrangênci­a semelhante ao da equipe europeia sobre as vocalizaçõ­es de outros primatas, mas o que se sabe até agora sugere que eles podem ter descoberto algo único. “Por enquanto, apenas os sistemas vocais de seres humanos e chimpanzés parecem abranger as três caracterís­ticas estruturai­s que propomos”, escrevem os cientistas.

Agora deve vir o trabalho mais difícil e lento: mostrar que essas caracterís­ticas podem correspond­er a uma gama de sentidos que os bichos são capazes de compreende­r.

 ?? Liran Samuni/taï Chimpanzee Project ?? Estudo tenta decodifica­r sons de chimpanzés na Costa do Marfim
Liran Samuni/taï Chimpanzee Project Estudo tenta decodifica­r sons de chimpanzés na Costa do Marfim

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