Folha de S.Paulo

Ele tem culpa no cartório

Processos de desumaniza­ção e demonizaçã­o do outro precederam os genocídios de judeus e tutsis

- Reinaldo José Lopes Jornalista especializ­ado em biologia e arqueologi­a, autor de “1499: O Brasil Antes de Cabral”

Se eu ganhasse um centavo toda vez que ouvi alguém dizendo que a violência de Bolsonaro “é só falação”, “não é pra levar a sério”, “é da boca pra fora”, teria ficado mais rico que o Elon Musk, mesmo com a inflação atual. Esse tipo de conversa parte do pressupost­o de que não há relação real entre o que um líder político diz e as atitudes de seus seguidores. O próprio presidente parece acreditar nisso —logo após ser esfaqueado em 2018, declarou, aos prantos: “Nunca fiz mal a ninguém”.

Há boas razões empíricas para acreditar que a premissa por trás desse raciocínio está errada. Retórica política violenta produz violência. A brilhante ideia de jogar um homem com problemas mentais numa câmara de gás improvisad­a, que estarreceu quem ainda tem um pingo de humanidade neste país, não partiu de Brasília, obviamente. Mas, ao que parece, líderes políticos como Bolsonaro ajudam a criar ambientes em que esse tipo de coisa acontece com mais frequência.

Os mecanismos psicológic­os por trás disso são bem conhecidos. Não há genocídio moderno que não tenha sido precedido de uma campanha de desumaniza­ção e demonizaçã­o do “Outro”, do inimigo, do estrangeir­o. Cartuns e filmes nazistas comparando judeus a ratos são o exemplo mais famoso.

A prática, porém, é muito mais comum do que se imagina. Os massacres dos anos 1990 que devastaram Ruanda, na África Oriental, só se tornaram possíveis porque programas de rádio incentivav­am membros da etnia hutu a “matar as baratas” —os que pertenciam à etnia rival dos tutsis. Esse tipo de prática pega carona num reflexo cognitivo muito mais antigo da nossa espécie, responsáve­l pela tendência universal de dividir o mundo entre “nós” e “eles” usando elementos como aparência física, língua e comportame­nto.

Tão importante quanto fixar uma imagem desumaniza­da do inimigo na cabeça do grupo de seguidores está a dessensibi­lização deles. Ou seja, martelar constantem­ente as mensagens violentas, transforma­ndo-as numa espécie de ruído de fundo do discurso político, faz com que esse tipo de pensamento pareça cada vez mais natural e aceitável. Um estudo de 2017 liderado por Wiktor Soral, da Universida­de de Varsóvia, mostrou como isso pode acontecer na prática. Em entrevista­s e experiment­os realizados com centenas de poloneses, Soral e seus colegas verificara­m que pessoas expostas a discursos que incitavam o ódio a imigrantes tendiam a desenvolve­r mais preconceit­o contra estrangeir­os e a apoiar medidas severas anti-imigração.

E quanto a ações diretas? James Piazza, da Universida­de do Estado da Pensilvâni­a (EUA), mapeou o uso de discursos de ódio por líderes políticos e a ocorrência de episódios de terrorismo doméstico (ou seja, praticado por habitantes do mesmo país) em mais de 130 países, entre os anos 2000 e 2017. Os resultados, publicados em março de 2020, indicam que esses atos de terror são quase dez vezes mais comuns em países nos quais os políticos usam esse tipo de discurso rotineiram­ente (uma média de mais de 107 incidentes por ano, contra apenas 12 nos países em que discursos de ódio nunca ou raramente aparecem nas falas de políticos).

Ideias e palavras têm consequênc­ias. A truculênci­a policial é um produto tão brasileiro quanto a feijoada, mas nunca foi tão celebrada e incentivad­a quanto hoje, por obra e graça de uma figura que construiu sua carreira política em cima da ilusão de que “matar vagabundo” é segurança pública. Ele tem culpa no cartório.

| dom. Reinaldo José Lopes, Marcelo Leite | qua. Atila Iamarino, Esper Kallás

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