Folha de S.Paulo

Os cadernos de Adele

- Milly Lacombe folha.com/nossoestra­nhoamor

Em 1966, aos 29 anos, ela se casou. Orientada por todas as convenções sociais, teve uma filha no ano seguinte. Depois, a segunda. Em seguida, a terceira e, finalmente, pariu um menino. Seguiu a vida fazendo o que era socialment­e esperado: cuidava da casa e das crianças enquanto o marido trabalhava fora. Os filhos estudaram, cresceram, casaram e se mudaram. Os netos começaram a chegar no exato momento em que ela ficou viúva. Assumiu o papel de avó e se manteve ocupada, até porque filhas e filho se revelaram uma gente bastante parideira: durante três décadas novos netos continuara­m sendo produzidos. Vista de fora, parecia ter tido até a derradeira fase da existência a mais perfeita vida de mulher branca de classe média paulistana.

Até que um dia, tomando uma taça de vinho com a filha mais velha no apartament­o em que passou os últimos 50 anos, de repente se levantou e saiu da sala de jantar em direção ao quarto, andando como andam as pessoas de 84 anos. Voltou com quatro cadernos escolares e os colocou em cima da mesa. O que é isso, a filha quis saber. “Coisas que eu escrevi enquanto vocês cresciam.” A filha, com uma mistura de curiosidad­e e medo, abriu o primeiro.

Nele, linguagem, estrutura e estética gramatical que fazem parte das melhores técnicas literárias. Você que escreveu isso, mãe?, a filha perguntou atônita. A mãe, que tomava mais um gole de vinho, colocou a taça na mesa com o movimento das pessoas debilitada­s pela artrose, e balançou a cabeça afirmativa­mente.

Nas páginas, elaboradas durante muitas madrugadas, o dia a dia de uma solidão imensa. Os diálogos com o marido nos quais ela pedia dinheiro para as compras e ele reclamava que os gastos estavam grandes demais, o silêncio dos filhos que entravam e saíam de casa sem falar com ela, ocupados que estavam de suas adolescênc­ias, o peso do trabalho que é cuidar de um lar de seis pessoas, a falta de tempo para que pudesse olhar para ela e não para os outros.

Quanto mais a filha lia, mais afundava a cabeça naqueles cadernos sabendo que não seria capaz de tirar os olhos dali para encarar a mulher do outro lado da mesa. A correção social da vida da mãe desfeita em quatro cadernos confession­ais violentame­nte escritos durante madrugadas de exílio.

Quando tomou coragem para tirar os olhos das páginas, perguntou se a mãe dividia aquelas dores com as amigas. Ela disse que não. “Por quê?”, quis saber. “Porque eu ficava envergonha­da de parecer que eu estava reclamando de uma vida perfeita, de um marido educado e gentil. Tinha medo de acharem que eu não amava vocês. Ser mãe não exige sacrifício­s e amor incondicio­nal?”

A filha então perguntou: “Se você tivesse sabido que a vizinha da porta da frente, e a do apartament­o do outro lado da rua, e as demais mulheres desse bairro e dessa cidade estavam passando pelas mesmas coisas, isso teria te feito sofrer menos?” No olhar da mãe, a expressão de quem nunca havia pensando nisso: que aquelas não eram dores apenas suas, mas de muitas outras mulheres como ela. Depois de assimilar a ideia, ela balançou a cabeça dizendo que sim.

A filha entendeu quem era a mulher bem a sua frente: uma escritora interrompi­da pelo sistema sexo-gênero. Alguém que passou os anos mais potentes da vida silenciada por normas e regras, sozinha dentro de uma casa cheia de gente, trabalhand­o como só as mães trabalham.

Sem saber o que fazer, me levantei e ajoelhei aos pés de minha mãe colocando a cabeça em seu colo. Pela primeira vez, eu sabia exatamente a quem estava me curvando.

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