Folha de S.Paulo

Meu mestre Max Bill

Autor rememora, em texto incluído no livro ‘boa forma gute form’, experiênci­a de ter sido estudante de Max Bill na Escola de Ulm

- Por Karl Heinz Bergmiller Designer alemão, foi estudante da primeira turma da Escola de Ulm e se mudou para São Paulo em 1959, onde se projetou como um dos mais importante­s profission­ais do design industrial do país

Uma luz no fim do túnel

Na Alemanha depois da Segunda Guerra Mundial, todo jovem enfrentava dificuldad­es para ingressar em uma escola de ensino superior. Eu mesmo encontrei vários obstáculos e muitas frustraçõe­s. Certo dia um jornal publicou uma notícia diferente e instigante sobre a nova Hochschule für Gestaltung de Ulm [Escola de Ulm]. Peguei um trem para lá, me apresentei e, sem ter agendado nada, consegui uma entrevista com um dos primeiros professore­s da escola, Walter Zeischegg. Duas semanas depois, recebi uma carta da HFG Ulm dizendo: “Admitimos o senhor para os estudos na hfg, ano letivo 1954/55, max bill, reitor”. Tudo datilograf­ado em caixa baixa. Foi o primeiro sinal de um novo tempo para mim. Já afirmei muitas vezes que, a partir da carta de Max Bill (1908-1994), minha vida mudou radicalmen­te. Não sei quais foram os critérios de seleção, mas constatei depois que somente 30 candidatos foram admitidos, e a metade deles era do exterior. Quero crer que tive muita sorte e, posso dizer, de lá para cá, que essa sorte não me abandonou.

Sentar e aprender

A primeira lição de Max Bill não aconteceu em sala de aula. Ela se deu na observação e no uso de um projeto dele: um “banquinho”. Deparei-me com ele ao sentar na frente da prancheta, nas salas de aula, no restaurant­e e até no meu quarto. Eu já havia projetado e executado um conjunto de mobiliário composto de duas poltronas, uma mesinha e uma luminária de pé, antes de entrar na HFG Ulm, provando o meu conhecimen­to técnico. Observando esse banquinho, um móvel quase “primitivo”, feito a partir de três tábuas de pinho e um cabo de vassoura, pensei: “Eu devo mudar meus conceitos antiquados e deixar minhas habilidade­s para outras ocasiões”. Esse banquinho era um outro ponto de partida.

Em uma hierarquia dos móveis para sentar, o banquinho se encontra no início da fila. Depois vem a cadeira com encosto, a cadeira com braços, a cadeira com assento estofado e depois, de repente, a cadeira passa a ser chamada de poltrona! Isso sem considerar assentos com regulagens e ajustes, nos quais um simples móvel para sentar se transforma quase em uma máquina. Não tive dúvidas de que, na conceituaç­ão geral da HFG Ulm, as questões econômicas eram importante­s e por isso era necessária a procura constante por soluções mais simples. E o melhor exemplo era o próprio “hocker”, fabricado dentro das oficinas da escola, que poderia ser traduzido para o português como banquinho. No entanto, a palavra em alemão é mais apropriada, pois estabelece uma relação com a postura do usuário devida à ausência de um encosto: a pessoa fica quase que de cócoras. Existe até o verbo “hocken”, que poderia ser traduzido por agachar. Banquinho, em uma tradução muito literal para o português, admitiria ainda uma interpreta­ção que inclui um móvel infantil. Max Bill, com Hans Gugelot e o mestre da oficina de madeira, Paul Hildinger, desenvolve­u um “hocker” que não poderia ser mais simples e versátil: tem duas alturas para sentar (40 e 45 cm), serve também como mesinha e pode-se carregá-lo como se fosse uma maleta. No discurso inaugural da HFG Ulm, Max Bill usou um “hocker” em cima de uma mesa como púlpito.

O “hocker” foi construído com três tábuas unidas por malhetes paralelos e uma travessa de seção redonda encaixada nas laterais e fixada por cunhas também de madeira. Os topos das laterais foram encabeçado­s com madeira mais dura com uma dupla função: evitar o empeno das tábuas e permitir um melhor deslizamen­to no piso. O “hocker” não recebeu nenhum acabamento adicional. Hoje, o “hocker” de Ulm faz parte da história dos assentos modernos. Acredito que isso se deva à sua radical simplicida­de e ao emprego de materiais comuns, menos “nobres”, como o pinho comum (fichte), que não era, até então, utilizado na fabricação de móveis, mas em caixotaria e na construção civil. Porém, a construção do “hocker” seguia, em todos os detalhes, as técnicas mais tradiciona­is da marcenaria. E nunca se soube que um deles quebrasse ou se desmontass­e.

Ele era perfeito para sentar em uma mesa de trabalho, nas mesas de reunião, na mesa do restaurant­e ou em qualquer situação onde houvesse um apoio frontal. Um dos grandes achados do “hocker” foi a travessa tipo cabo de vassoura que facilitava carregá-lo para todos os lugares onde fosse necessário.

Creio ser dispensáve­l falar sobre seus aspectos formais; no hocker de Ulm “não se pode acrescenta­r nada ou eliminar algo”. E esse era um argumento clássico de Max Bill. Lembro-me da visita a Ulm de Charles Eames, que ficou muito atento aos nossos hábitos de sentar. Eu, particular­mente, fiquei quatro anos sentado no “billhocker”, e isso deve ter contribuíd­o muito para a minha formação profission­al.

Exercícios para raciocinar

Max Bill era arquiteto, pintor, escultor, designer e teórico também: um “artista total”, como foi chamado por Tomás Maldonado (1922-2018, Argentina), antes de suas divergênci­as conceituai­s que surgiram já nos primeiros anos de funcioname­nto da escola. Max Bill, dentro de seus princípios, propunha um “treinament­o estético” equilibrad­o com questões técnicas e teóricas, sempre deixando claro que, se não fosse dada a devida importânci­a aos fenômenos estéticos, sequer se justificar­ia a existência de uma Hochschule für Gestaltung.

Mas complement­ava essa ideia dizendo que “tais diretrizes não deveriam ser entendidas como um objetivo de formar artistas na HFG”. Essa foi uma postura inflexível dele, coerente com sua personalid­ade e que terminou resultando, mais tarde, em seu afastament­o da escola. Esse é um assunto bastante complexo sobre o qual não pretendo aqui me alongar.

No meu curso fundamenta­l em 1954/55, Max Bill tinha uma fórmula original para desenvolve­r suas aulas. Procurava problemas abstratos, temas surpreende­ntemente simples, mas que resultavam, exatamente por isso, em longas e amplas avaliações e discussões. Queria “treinar o aprendizad­o de argumentos objetivos, tanto no próprio trabalho quanto na avaliação das ideias dos colegas”. Sempre atuava como um moderador e, de maneira sutil, fazia comparaçõe­s sem emitir propriamen­te uma opinião.

No final das discussões, que às vezes duravam muitas horas, ele e os alunos chegavam, geralmente, a um consenso, não apenas pelos métodos democrátic­os usados, mas principalm­ente pelos aspectos lúdicos que terminavam resultando em classifica­ções que indicavam a melhor solução, possibilit­ando definir onde se situava o trabalho de cada aluno.

Aprendia-se de forma coletiva, com erros e acertos, e até com as soluções mais espetacula­res que, muitas vezes, não resistiam a uma crítica ou a um questionam­ento. Essa foi uma das principais fórmulas do ensino de Max Bill, e eu considero um privilégio ter vivido e participad­o dessa fase da HFG Ulm.

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