Fala de Bachelet em visita à China frustra ativistas de direitos humanos
Viagem da alta comissária da ONU coincide com vazamento de dados sobre situação uigur em Xinjiang
As declarações dadas pela alta comissária de direitos humanos da ONU, Michelle Bachelet, após uma rara visita de seis dias à China, frustraram ONGS de direitos humanos que viam na iniciativa uma oportunidade para instar Pequim a respeitar os direitos humanos, especialmente em Xinjiang, região autônoma na porção oeste do país alvo de acusações de repressão, liderada pelo regime chinês, contra a etnia uigur.
A chilena disse neste sábado (28) que a viagem não foi uma investigação, mas uma chance de “conversar francamente” com as autoridades chinesas. Em uma curta passagem mais crítica, pediu a Pequim que reveja suas políticas antiterrorismo para evitar “medidas arbitrárias” contra minorias muçulmanas.
Ela negou que as reuniões em Xinjiang tenham sido supervisionadas pelo regime chinês —a visita não pôde contar com a participação da imprensa devido à pandemia. Afirmou, ainda, que a visita teria ajudado a estreitar conversas com Pequim. Ativistas, no entanto, insistem que as discussões sobre Xinjiang e outras áreas questionadas sejam sempre abertas, não realizadas em fóruns fechados.
Avisitadaaltacomissária—a primeira à China em 15 anos— coincidiu com a divulgação, na última semana, de milhares de documentos e imagens vazados de distritos policiais de Xinjiang, o que elevou a pressão para que a comunidade internacional imponha sanções ao regime liderado por Xi Jinping.
A província de 1,6 milhão de km² —área semelhante à do Amazonas— é um importante polo financeiro: dali, saem 19% da produção global de algodão, 25% dos derivados de tomate e ao menos 40% do polissilício, matéria-prima da indústria eletrônica e de painéis solares, segundo o grupo de pesquisa C4ADS, de Washington.
“Os governos podem, no mínimo, garantir que não sejam cúmplices desses abusos de direitos humanos ao aprovar leis que proíbam as empresas de ter, em suas cadeias de suprimentos, produções que violem os direitos uigures”, diz à Folha Koen Stoop, coordenador de políticas do Congresso Mundial Uigur na União Europeia.
Mas Stoop duvida que o vazamento, publicado inicialmente em veículos como a britânica BBC e o francês Le Monde, vá mudar a postura dos governos. “Esperamos que seja um alerta para a comunidade internacional, mas a verdade é que se trata do terceiro, quarto ou quinto alerta.”
Apelidados de Arquivos da Polícia de Xinjiang, os documentos, aos quais a Folha teve acesso em versão em inglês, foram obtidos em dois condados de maioria uigur em Xinjiang. A província de 25 milhões de habitantes, mostram dados oficiais, tem 10,9 milhões de pessoas da etnia han —predominantenachina—e11,6milhões de uigures, povo com fortes laços na Ásia Central, além de outras minorias muçulmanas.
São mais de 2.800 fotos de uigures detidos, dezenas de documentos, sendo alguns de figuras do alto escalão do regime chinês, e 23 mil arquivos de pessoas presas e colocadas emcamposdereeducação.todos datam de 2017 e 2018, anos iniciais do avanço de Pequim.
A importância, explicam os envolvidos, é ser o primeiro material que demonstra a natureza repressiva dos campos de reeducação. Entre as razões para a detenção de muitos presentes nos arquivos está o envolvimento no que é descrito como atentados terroristas cometidos no passado, desde os anos 1980.
Houve, sim, ataques isolados, especialmente nos últimos 20 anos. Por isso, o regime passou a acusar uigures de promoverem terrorismo e de ter ligações com grupos fundamentalistas internacionais.
A situação escalou em 2017, quando Pequim deu inicio a um plano de alto policiamento e encarceramento na região com a justificativa de combater o separatismo e o terrorismo. Era uma espécie de plano de cinco anos para apaziguar a situação e estreitar os laços de Xinjiang com o país.
Memetimin Memet, 35, por exemplo, recebeu uma pena de dez anos de prisão. Só que, em sua ficha, a acusação nada teve a ver com atos do tipo. “O suspeito aprendeu a prática de culto e das escrituras [islâmicas] por cerca de um mês em 1994; deixou a barba crescer por cerca de três meses, de maio a agosto de 2006”.
“Grande parte do que o regime tem tentado fazer é pegar qualquer coisa que as pessoas tenham feito no passado e tomar isso como uma indicação de que elas precisam ser reeducadas ou punidas”, explica Adrian Zenz, da Fundação Memorial das Vítimas do Comunismo, think tank com sede nos EUA. “E, muitas vezes, a suposição é a de que toda a família tem problemas, e parentes também são detidos.”
Zenz, antropólogo alemão, é um dos principais nomes que estudam a situação em Xinjiang. Foi ele quem recebeu os arquivos de uma fonte anônima que não quis ser identificada por temer represálias. Parte do material mostra imagens de itens apreendidos pela polícia por serem considerados ilegais. Ali estão tapetes de oração, hijabs —véu islâmico que cobre o cabelo e o pescoço— e versos manuscritos do Alcorão.
Outro documento traz uma avaliação feita pelo ministro da Segurança Pública em junho de 2018, após visitar Xinjiang. Zhao Kezhi diz que a administração local foi bem-sucedida nocombateaoquedescrevecomo terrorismo, “a despeito da situação de detenções severamente excessivas em relação à capacidade das prisões locais”.
Pesquisadores e organizações de direitos humanos projetam que, desde 2017, de 1 milhão a 3 milhões de uigures tenham sido detidos em Xinjiang, tanto em prisões quanto em campos de reeducação.
O ministro Kezhi, no mesmo documento, diz que, desde o ano anterior, “mais de 20 mil gangues terroristas perigosas foram destruídas, o que é mais de cinco vezes o total dos últimos dez anos”.
Procurada, a embaixada chinesa no Brasil disse que o país já esclareceu várias “as acusações infundadas em relação à chamada ‘questão dos direitos humanos’ em Xinjiang”. Mencionou respostas dadas pelo porta-voz da chancelaria do país, Wang Wenbin, durante entrevista coletiva na terça (24).
Na ocasião, Wenbin disse que o vazamento seria mais um caso de difamação de Xinjiang por forças anti-china. “As mentiras e os rumores que espalham não podem enganar o mundo nem esconder o fato de que Xinjiang goza de paz e estabilidade, sua economia está prosperando e seu povo vive e trabalha em paz.”
Outro documento dos Arquivos é uma orientação sobre como os agentes de segurança devem agir em caso de rebeliões. Os guardas são orientados a disparar tiros de advertência se os internos não aceitarem ordens verbais. Caso isso não funcione, eles podem atirar para matar.
A pressão cresce não só na arena econômica, com ameaças e pedidos de sanções, mas também na cobrança de mecanismos de investigação e justiça —não à toa, o vazamento foi publicado na semana em que Bachelet está na China. Dezenas de ONGS internacionais pediam que a alta comissária assumisse postura incisiva em relação ao tema.
“O mandato de Bachelet tem sido marcado pela ausência de diplomacia pública sobre a China; quando se compara isso com as outras crises com as quais ela teve de lidar, como Mianmar e Ucrânia, a diferença na linguagem e na frequência é imensa”, afirma o brasileiro Raphael Viana David, diretor do programa para a Ásia do Serviço Internacional de Direitos Humanos (ISHR), baseado em Genebra, na Suíça.
Bachelet negociava uma visita à China desde 2018. Pressionada por ONGS para fazer um monitoramento remoto da situação em Xinjiang diante da demora na negociação, ela assim o fez. O documento sobre o processo, relata Viana, estava pronto em setembro passado. Atéhoje,porém,omaterialnão foi disponibilizado ao público.
Organizações como a ISHR cobram a divulgação do relatório e querem que a chilena faça com que a oportunidade da recente visita seja o pontapé para processos internacionais de justiça, como investigações de possíveis crimes contra a humanidade ou genocídio contra os uigures.
Após as recentes declarações da alta comissária, a ISHR disse, em nota, que foi usada uma linguagem notadamente leve para uma situação que escalou nos últimos anos: “Bachelet perdeu uma oportunidade única de lançar as bases para um monitoramento substancial da crise de direitos humanos na China. Seu discurso evidenciou sua falta de compreensão dos desafios de direitos humanos do país”.
Zenz,entrevistadoantesdea chilena dar as declarações neste sábado, escreveu no Twitter que o conteúdo da fala foi pior doqueoesperado.“aquelaque talvez seja a pior violação de direitos humanos do nosso tempo foi tratada como questão que deve apenas ser revisada noâmbitodoméstico,pelopróprio perpetrador da violência.”
Ao final, a expectativa era a criação de mecanismo de monitoramento e investigação do assunto no guarda-chuva da ONU. Algo assim, porém, teria de ser aprovado pela Comissão de Direitos Humanos — ou seja, obter o voto favorável dos países-membros. “Aí entra o desafio, pois a China pressiona várias dessas nações”, diz Viana —o Brasil, que tem Pequim como principal parceira comercial, integra o conselho.