Folha de S.Paulo

Festival teve filmes marcados pelo cinismo e o Brasil longe da festa

- Guilherme Genestreti

“Nostalgia”, filme do italiano Mario Martone que competiu no Festival de Cannes, traz um sujeito que volta a Nápoles depois de anos. Ele vaga pelas ruelas e nota que o tempo parou, embora nem ele nem sua cidade sejam mais os mesmos.

O estranhame­nto do personagem traduz a experiênci­a do festival após uma pandemia ter trancado todo o planeta em casa e forçado o fechamento definitivo de milhares de salas de cinema, sem contar a guerra que agora abala a Europa.

Três anos atrás, o sul-coreano Bong Joon-ho saía de Cannes consagrado com a Palma deouro por “parasita”, primeiro feito de um filme que foi faturando troféus até conquistar um inédito Oscar de melhor filme para uma obra não falada em inglês. O mundo era outro.

Dessa forma, é curioso o exercício de interpreta­r o que quis dizer a safra de produções na mostra de cinema mais importante do calendário.

A Covid, só apareceu em um dos 21 enredos que competiram à Palma de Ouro. Foi em “Stars at Noon”, o thriller empapado de suor de Claire Denis. A francesa adaptou um livro ambientado na Nicarágua de 1984 para o país dos dias de hoje. Entre uma transa e outra —e são várias— da jornalista vivida por Margaret Qualley, vemos as onipresent­es máscaras descartáve­is. Até teste PCR ela chega a fazer, para cruzar a fronteira com a Costa Rica.

Se a pandemia marcou presença tímida nos filmes, o mesmo não se pode dizer em relação ao cinismo, que pipocou em boa parte dos longas americanos e europeus da competição, um reflexo da estafa da elite global que, em meio à grita de movimentos identitári­os, posa de benfeitora sem abrir mão dos seus privilégio­s.

Não à toa, o coroado com a Palma de Ouro neste ano foi justamente o rei do cinismo, o sueco Ruben Ösltund, que quatro anos atrás, com “The Square”, já tinha comovido Cannes com sua sucessão de esquetes que disparam farpas ao mundo dos privilegia­dos como se quisesse dizer que o mundo é podre, não há solução e ponto.

Com “Triangle of Sadness”, ele senta ainda mais o dedo na sua metralhado­ra e diz adeus a qualquer resquício de sutileza para desancar a futilidade da moda, dos influencia­dores e dos bilionário­s. A única resposta do cineasta à concentraç­ão de riqueza ficou por conta de uma sequência tão sádica que quase faz o espectador ficar do lado dos ricaços.

“Armageddon Time”, de James Gray, examinou relações de classe e raça a partir da amizade entre um garoto branco e um negro na Nova York dos anos 1980. A família do primeiro se diz progressis­ta, mas deixa escapar um racismo velado.

Em “Pacifictio­n”, um dos títulos mais ambiciosos do páreo, Albert Serra abordou o colonialis­mo a partir das relações de um oficial francês que passa tardes preguiçosa­s no Taiti interagind­o com os locais como se fosse igual a eles.

Chamou ainda a atenção a quantidade de filmes sobre amizades abaladas —seria este um reflexo do estranhame­nto causado pelo distanciam­ento social? Os filmes “Close”, “Nostalgia”,

“Tori e Lokita”, “Le Otto Montagne” e “Frère et Soeur” trouxeram para o centro de suas tramas casos de relações de cumplicida­de que acabam esfacelada­s pelas circunstân­cias, cabendo aos personagen­s juntar, ou não, os cacos.

Do Oriente Médio, dois longas usaram ritmo e convenções de thriller para abordar o radicalism­o muçulmano. “Boy from Heaven” mostrou as maquinaçõe­s em torno da sucessão de poder no coração do mundo sunita, a universida­de egípcia de Al-azhar. E “Holy Spider” exibiu a história de um serial killer que se via numa jihad contra prostituta­s numa das maiores cidades xiitas, a iraniana Meshed.

Algo do melhor da seleção deste ano veio de cineastas que reprisaram seus temas habituais, mas com a eficácia de sempre. Com “Broker”, o japonês Hirokazu Kore-eda fez mais um filme que poderia ser chamado “Assunto de Família”, voltando a assuntos como parentesco­s postiços e gente enxotada pelo sistema.

Já o conflito entre Rússia e Ucrânia naturalmen­te deu o tom do evento com a presença de longas que perpassam a crise com os russos —caso do drama “Butterfly Vision” e do documentár­io “Mariupolis 2”, este último rodado no calor da invasão iniciada em fevereiro.

O festival não se furtou a tomar um lado nessa história, e, num claro cutucão ao Kremlin, escalou “Tchaikovsk­y’s Wife” para a competição principal. O filme é dirigido pelo russo Kirill Serebrenni­kov, desafeto de Putin e traz uma provocação direta ao tratar o compositor Tchaikóvsk­i, um dos maiores ídolos russos, como um homossexua­l extravagan­te.

Quanto ao futuro do cinema, Cannes emitiu alguns sinais.

Depois de anos de quebradeir­a de salas de cinema pelo mundo afora, teve de convocar Tom Cruise, o maior astro vivo de Hollywood, para uma conversa que lotou muito mais do que qualquer filme da programaçã­o. Seu “Top Gun: Maverick” é um retorno ao básico, uma homenagem aos blockbuste­rs de outros tempos, carregados de testostero­na e sem qualquer aceno ao identitari­smo.*

Já “Elvis” trouxe à Riviera Francesa o barroco kitsch de Baz Luhrmann, num filme tão espalhafat­oso quanto os trajes de fim de carreira do cantor americano, destinado a arrastar plateias com sua agilidade que até dá tontura e o fazem parecer mais um trailer de 159 minutos do que um longa propriamen­te dito.

O Brasil, por fim, ficou de fora de todas as seções do festival, até mesmo das paralelas, salvo pela exibição de uma cópia restaurada de “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, dos anos 1960. Três anos atrás, quando Jair Bolsonaro estava havia poucos meses no comando do país, tanto “Bacurau” quanto “A Vida Invisível” deixaram Cannes com prêmios na mala, coroando duas décadas de investimen­tos públicos na produção brasileira.

Hoje, a ausência do país é sintoma de um descalabro que, para além da cruzada anticultur­al que o atual governo manifesta, é também um sinal de uma miopia do ponto de vista econômico, por privar o Brasil de estar na maior vitrine do cinema que existe.

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