Folha de S.Paulo

Lá vamos nós de novo

- Ruy Castro

Se você já se perguntou onde foi parar todo o dinheiro velho que trocou pelo novo nas antigas mudanças de moeda no Brasil, sabe que boa parte dele foi incinerada pelos governos de então. Mas outra parte sobreviveu e circula hoje como ectoplasma pelos sites de leilões e compras, disputado por colecionad­ores de velharias exóticas —e poucas velharias são mais exóticas do que dinheiro brasileiro. De anos em anos, devorado pela inflação, cortavam-se três zeros do seu valor e pespegavam­lhe um novo nome, o que obrigava à destruição de bilhões de cédulas e sua substituiç­ão por outras tantas.

Daí, de 1942 para cá, tivemos as notas de cruzeiro, cruzeiro novo, mais uma vez cruzeiro, cruzado, cruzado novo, novamente cruzeiro, cruzeiro real e, por fim, o real. As cédulas novas mal chegavam a ficar velhas e nojentas, porque a inflação fazia com que fossem logo renomeadas e trocadas. Em 1993, a inflação no Brasil foi de, pode crer, 2.708,55%.

Carla Zaccagnini, artista plástica argentina que, em criança, nos anos 1970 e 1980, morou no Brasil com sua família, lembra-se bem daquela loucura. Ela é o objeto de sua atual exposição numa galeria de Nova York, “Cuentos de cuentas”, composta de material que comprou no Mercado Livre: notas e mais notas de dinheiro brasileiro, que ela dobrou em barquinhos para expor. A ideia de ver dinheiro que um dia foi duro de ganhar reduzido a algo tão infantil como um barquinho faz pensar em como podíamos ter aproveitad­o melhor aquele tempo, sem tantas aflições e angústias.

A criação do real, em 1994, vergou a inflação a níveis de países estáveis e assim a mantivemos até hoje. Até hoje? Sob Jair Bolsonaro, a inflação voltou pela primeira vez aos dois dígitos anuais. Lá vamos nós de novo.

Ontem, ao tirar dinheiro na máquina, fui contemplad­o com uma nota de R$ 200. Carla Zaccagnini não demora a ter de atualizar sua exposição.

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