Folha de S.Paulo

A ameaça populista

Rodolfo Hernández é o pior pesadelo dos progressis­tas

- Mathias Alencastro Pesquisado­r do Centro Brasileiro de Análise e Planejamen­to, ensina relações internacio­nais na UFABC | seg. Mathias Alencastro | qui. Lúcia Guimarães | sáb. Tatiana Prazeres, Jaime Spitzcovsk­y

A história da última semana da eleição colombiana soa como a repetição de um enredo cada vez mais comum nas democracia­s liberais. Diante da vitória iminente da esquerda, liderada pelo moderado Gustavo Petro, a direita se rebela e troca um opositor moderado por um populista.

Quem desempenha esse papel é o oligarca-bufão Rodolfo Hernández. Ele ultrapasso­u Federico “Fico” Gutiérrez, o jovem liberal apoiado por todos os partidos da direita tradiciona­l, e chegou ao segundo turno contra Petro com uma campanha relâmpago que retoma a receita original dos populistas: demagogia anticorrup­ção, anticomuni­smo enfurecido e uso exclusivo das redes sociais.

A passagem para a segunda volta eleva a tensão das presidenci­ais. Todos os candidatos circulam pelo país acompanhad­os de escoltas militares, e ameaças de assassinat­os são denunciada­s cotidianam­ente.

Petro sabe que toda a tensão gira em torno da sua candidatur­a. Sua biografia reflete o longo caminho da Colômbia em direção à paz. O exmembro da guerrilha M-19 teve uma passagem bem-sucedida pela política institucio­nal, servindo como senador e prefeito, antes de construir a primeira plataforma de partidos progressis­tas com condições de vencer as presidenci­ais.

O veterano soube explorar as mudanças trazidas pelo acordo de paz de 2016. Desde então, as guerrilhas marxistas deixaram de ser um fardo para a esquerda, e Petro finalmente conseguiu organizar essa eleição em torno dos temas que mobilizam as classes populares, como a desigualda­de e o Estado social. Sinal de força da sua coalizão, entregou recentemen­te as chaves da sua campanha a Alfonso Prada, antigo secretário da Presidênci­a de Juan Manuel Santos, o conservado­r arquiteto do processo histórico.

A candidatur­a de Petro também cresce em cima do fracasso da direita tradiciona­l. O atual presidente, Iván Duque, eleito em 2018 por aqueles que se opunham ao pacto de paz, perdeu o controle do país durante a pandemia, marcada por protestos violentos e enormes perdas humanas entre os mais vulnerávei­s.

Em posição de força para unir a direita e recuperar uma parte dos votos antissiste­ma, Hernández tem tudo para ser um rival muito mais forte do que Gutiérrez no segundo turno.

Lamentavel­mente, a instabilid­ade política ofusca a qualidade do debate programáti­co. Enquanto Hernández é mais conhecido por confundir Albert Einstein e Adolf Hitler, as propostas de Petro o colocam na vanguarda das esquerdas latino-americanas. Sua política de segurança passa por romper a colusão entre o crime organizado e a elite política, que assombra o país desde a década de 1980, promovendo uma inversão de paradigma no controle de substância­s ilícitas.

Ele também propõe interrompe­r as exploraçõe­s de petróleo e gás, um anátema para desenvolvi­mentistas, e não hesita em fazer um paralelo entre o governo direitista de Duque e o do venezuelan­o Nicolás Maduro.

Basta ele cumprir metade do seu programa para inaugurar uma nova era na América Latina. Mas quem realmente inspira o futuro da Colômbia é a sua vice, Francia Márquez, negra, feminista, ecologista e de uma coragem avassalado­ra. Numa disputa entre profission­ais da política, a verdadeira mudança é ela.

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