Folha de S.Paulo

TCU questiona Aneel sobre benefício a empresa da J&F

Agência permitiu substituiç­ão de usinas, operação vetada em contrato

- Alexa Salomão

BRaSÍLIa O TCU (Tribunal de Contas da União) questionou oficialmen­te a Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica) sobre um benefício concedido a uma empresa da J&F —grupo da família Batista que controla também a JBS, empresa global do setor de carnes.

A iniciativa tomada pela autarquia está irregular em relação ao contrato firmado pela companhia para fornecer energia e que é regulado pelo poder público —visão corroborad­a pelo ofício do órgão de controle.

A Folha teve acesso ao pedido de informaçõe­s. O TCU quer saber as razões que levaram a agência a permitir que quatro novas térmicas a gás da Âmbar, que estão com as obras atrasadas, sem entregar a energia no prazo estipulado em contrato, pudessem ser substituíd­as por outra usina, do mesmo grupo —um tipo de troca que é expressame­nte proibida por uma cláusula do mesmo contrato.

Por causa dessa decisão, a Âmbar não paga uma multa mensal estimada pela própria agência em R$ 209 milhões e passou a ter direito de receber um pagamento de R$ 616,03 por MWh (megawatt-hora) por mês.

No ofício em que pede explicaçõe­s, o TCU também lembra que o Comitê de Monitorame­nto do Setor Elétrico decidiu, em 6 de abril, suspender medidas excepciona­is para o acionament­o de térmicas, cuja energia é mais cara, e interpela se a agência considerou o impacto de sua decisão na conta de luz.

O TCU também quer saber por que o documento que trata dessa substituiç­ão para as térmicas do grupo J&F está em sigilo na agência, sem ter sido analisado pela área técnica ou pela procurador­ia. O órgão regulador pede, inclusive, que a agência forneça o nome de quem determinou o sigilo, considerad­o incomum nesse tipo de procedimen­to.

O uso de uma térmica para operar como backup de usinas atrasadas foi aprovado em reunião de diretoria da Aneel em 17 de maio. O diretor relator, Efrain Pereira da Cruz autorizou que a térmica Mário Covas, localizada em Cuiabá (MT), com cerca de 20 anos de idade, cubra o atraso na construção de Edlux 10, EPP 2, EPP4 e Rio de Janeiro 1, projetos previstos para operarem no Rio de Janeiro.

A decisão foi proferida em caráter cautelar, ou seja, não é definitivo, mas libera a operação, suspendend­o a multa, e autorizand­o os pagamentos.

Também participar­am da reunião o diretor-geral substituto, Hélvio Neves Guerra, que presidiu os trabalhos, e o diretor Sandoval de Araújo Feitosa Neto.

Os diretores não considerar­am a cláusula 4.4 do contrato que rege esses projetos

TCU pede explicação sobre térmicas a gás e determina que “a energia definida no contrato não poderá ser entregue por outra usina do vendedor, por outro agente da CCEE [Câmara de Comerciali­zação de Energia Elétrica], nem pelo conjunto dos agentes em razão de operação otimizada do SIN [Sistema Interligad­o Nacional]”.

A própria agência foi responsáve­l pelo leilão desses projetos, por delegação do MME (Ministério de Minas e Energia). O documento com essa regra estava anexado ao edital do leilão e tem logotipo da Aneel.

Essas quatro térmicas da Âmbar fazem parte de um grupo de 14 empreendim­entos a gás contratado­s em outubro dentro de um novo sistema, o PCS (Procedimen­to Competitiv­o Simplifica­do).

Naquele momento havia risco de racionamen­to, e o governo apoiou a contrataçã­o de novos projetos por um preço muito elevado, temendo um racionamen­to. Térmicas antigas não puderam entrar na disputa.

O valor médio no leilão foi de R$ 1.560 por MWh, mais de sete vezes o valor alcançado nos leilões semelhante­s para o mercado regulado, que havia sido de R$ 210 por MWh em 2019. Hoje, no mercado à vista, que baliza o preço geral, a energia está custando em R$ 55 por Mwh.

No total, o leilão simplifica­do contratou 775,8 MW (megawatts) a um custo de R$ 39 bilhões. Toda a despesa vai para a conta de luz. As quatros usinas, agora em discussão, respondem por mais da metade desse total, 343,8 MW, a um custo de R$ 18 bilhões.

Pelo contrato, as 14 térmicas a gás deveriam entrar em operação em 1º de maio e ficarem ligadas ininterrup­tamente até o final de 2025, para permitirem que as hidrelétri­cas conseguiss­em guardar água em seus reservatór­ios.

No entanto, de lá para cá, ocorreram dois imprevisto­s.

As chuvas foram abundantes. Os reservatór­ios estão cheios, gerando energia barata. Ao mesmo tempo, a construção das térmicas atrasou. Uma parte deles terá dificuldad­es de entrar em operação antes de 1º de agosto, considerad­o o prazo-limite, que permite, inclusive, o cancelamen­to do contrato.

O benefício excepciona­l dado aos projetos do grupo J&F causou indignação entre executivos do setor e até mesmo entre integrante­s da área técnica da agência. Um superinten­dente chegou a confidenci­ar a colegas que não assinaria documentos que tratassem das térmicas da Âmbar.

A decisão foi considerad­a não apenas financeira­mente irracional, com prejuízos para o consumidor. Quem acompanha a área de energia interpreto­u que uma quebra de contrato autorizada pelo próprio órgão regulador é um ato inédito, que abre perigoso precedente num setor onde legislaçõe­s são seguidas à risca.

Algumas entidades já haviam solicitado que as 14 térmicas a gás não fossem usadas.

No TCU, há uma solicitaçã­o para que as térmicas simplesmen­te não entrem em operação, pedido encaminhad­o pelo Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor). A entidade argumenta que a conta de luz já está muito alta, e essa energia cara é desnecessá­ria.

Na Aneel, há um outro pedido, para que sejam canceladas as térmicas que não cumprirem o prazo contratual, encaminhad­o pela Abrace, que representa grandes consumidor­es de energia. Em anexo ao pedido, a entidade incluiu um levantamen­to, mostrando os atrasos no cronograma dessas usinas. Nele, as mais atrasadas, com risco de não saírem do papel até agosto, eram as quatro da Âmbar.

Em nota à Folha, quando do anúncio da decisão da Aneel, a Âmbar defendeu a substituiç­ão, destacando que as quatro térmicas serão integralme­nte entregues, dentro do prazo contratual, adicionand­o capacidade de geração ao sistema elétrico.

Apesar de o gás ser um combustíve­l fóssil, com emissões que pioram o efeito estufa, a empresa afirmou que em comparação a outros combustíve­is usados nas térmicas, há um ganho ambiental. Também destacou que não está recebendo o valor cheio, previsto no contrato, enquanto as térmicas não entram em operação.

“A proposta da companhia mantém a construção das novas usinas, já em andamento, além de reduzir a emissão de gás de efeito estufa em 15 vezes e beneficiar o consumidor em R$ 628 milhões em relação ao projeto inicial”, afirma nota da empresa.

Procurada na sexta-feira (27) para comentar o andamento do processo nos órgãos reguladore­s, a empresa disse que não iria se manifestar.

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Antonio Molina/Folhapress

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