Folha de S.Paulo

Com fome, não há desenvolvi­mento

Recessão, pandemia e falta de políticas públicas pioram inseguranç­a alimentar no Brasil

- Marcia Castro Professora de demografia e chefe do Departamen­to de Saúde Global e População da Escola de Saúde Pública de Harvard | dom. Antonio Prata | seg. Marcia Castro, Maria Homem | ter. Vera Iaconelli | qua. Ilona Szabó de Carvalho, Jairo Marques | q

A alimentaçã­o é um dos direitos sociais previstos na Constituiç­ão Federal Brasileira, bem como na Declaração Universal dos Direitos Humanos. No Brasil, Josué de Castro, em seu livro Geografia da Fome (publicado em 1946), descreveu a fome não como algo natural, mas como um fenômeno social, a cruel expressão da ingerência política e de um histórico de exploração humana e ambiental. Reconhecid­o internacio­nalmente por sua incansável luta contra a fome, Josué de Castro foi nomeado ao prêmio Nobel da paz em 1953, 1963, 1964 e 1965.

Abordara fome como fenômeno social era aba sedo Programa Fome Zero, que foi lança doem 2003 eque continha um conjunto de ações voltadas à promoção da inclusão social, da educação alimentar e nutriciona­l, e da produção e distribuiç­ão de alimentos com qualidade, quantidade e regularida­de. Após 11 anos do programa, o Brasil saiu do Mapa da Fome da Organizaçã­o das Nações Unidas (ONU) em 2014.

A situação piorou coma recessão econômica, e se deteriorou com achegada da pandemia. A Pesquisa de Orçamentos F amil iares(POF),re alizada entre 2017 e 2018, já mostrava que, em cinco anos, houve um aumento de 42% no número de pessoas que passavam fome. Esse retrocesso na inseguranç­a alimentar tem geografia e demografia específica­s. É maior nas regiões Norte e Nordeste, entre os mais pobres, com menos escolarida­de e entre pretos e pardos.

A pandemia de Covid-19 piorou a inseguranç­a alimentar em vários países, porém no Brasil o impacto foi maior. Dados do Gallup World Poll, analisados pelo FGV Social, mostram que 17% das pessoas em 2014 não tinham dinheiro suficiente para comprar alimentos nos últimos 12 meses. Em 2019 eram 30%, e em 2021 chega a 36% (acima da média mundial, fato inédito na série histórica brasileira). Essa piora acelerada é mais uma das muitas consequênc­ias da má gestão durante a pandemia, e da falta de políticas sociais que promovam a redução das desigualda­des.

Dois grupos populacion­ais foram afetados de forma desproporc­ional: os pobres e as mulheres. Entre os 20% mais pobres, 75% não tinham dinheiro suficiente para comprar comida em 2021 (eram 53% em 2019). Esse val oré muito maior doque a média mundial desse grupo populacion­al (48%). Já entre as mulheres,a inseguranç­a alimentar aumentou 14 pontos percentuai­s entre 2019 e 2021, enquanto entre os homens houve queda de 1 ponto percentual.

Os efeitos da subaliment­ação e da fome são diversos, tais como deterioraç­ão das condições de saúde (incluindo saúde mental), morte precoce, fraco desempenho escolar, atraso no desenvolvi­mento infantil e redução da capacidade produtiva.

Com mais de um terço da população brasileira vivendo à margem da dignidade humana, a falta de ações sociais em larga escala para combatera fome e o corte de alguns programas que ajudam na redução da inseguranç­a alimentar (como por exemplo a construção de cisternas no semiárido) são inaceitáve­is. Ou a atual liderança nunca leu Josué de Castro, ou tem como estratégia de eliminação da pobreza o aniquilame­nto dos pobres.

A cinco meses das eleições, não há debates sobre a fome no Brasil, e a proposta de Projeto de Nação dos militar e sé um avergonha! Preconiza o agronegóci­o como fator estratégic­o de segurança alimentar, replica estratégia­s de exploração da Amazônia da época da ditadura, e prevê cobrança no SUS ena educação. Ignora a diversidad­e, acultura, e as desigualda­des.

Como disse Josué de Castro, “Enquanto metade da humanidade não come, a outra metade não dorme, com medo da que não come .” Ou o Brasil muda e passa a priorizara inclusão social eareduçã odas desigualda­des, ou muita gente vai perder o sono.

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