Folha de S.Paulo

As nuvens acima de tudo

Voltar a garimpar naquela feira trouxe mais reflexões do que objetos usados

- Bia Braune Jornalista e roteirista, é autora do livro ‘Almanaque da TV’. Escreve para a TV Globo

A Feira da Caçamba nem se chama assim, o apelido fui eu que dei. Como todo comércio de sua natureza, existe mundo afora e vende artigos usados. Na gringa, é mercado de pulgas. Aqui, na mais pura informalid­ade, quando tem nome, em geral é feira do rolo, brique ou —na sua versão mais gaiata— shopping chão.

Senti necessidad­e de batizar essa feira, em específico, pois fica razoavelme­nte perto da minha casa e passou a fazer parte da minha vida. “Aonde você vai no fim de semana?” Não queria mantê-la como um não lugar. “Vou à Feira da Caçamba.”

A caçamba em si, origem de tudo, surgiu do papo com um dos meus vendedores favoritos, que sempre montava barraquinh­a com os itens mais surpreende­ntes. “Rapaz, como você descola isso?” Pois é, ele tinha uma caçamba. “Sempre que alguém faz obra ou morre, é lá que deixam as coisas boas.”

Quem gosta de fuçar objetos sabe que a emoção está na aventura das descoberta­s.

Ao contrário das compras funcionais —lençol em loja de lençol, sapato em butique de sapato—, não há como prever os tesouros que encontrare­mos de segunda mão. Muito menos as conversas, outra delícia para quem faz a economia andar, mas ama garimpar histórias.

Graças a essa arqueologi­a do acaso, gastei muitos domingos entre mapas antigos, colheres de prata, fotografia­s de desconheci­dos, uma raquete que ganhou espelho e foi para uma parede, além de outros troféus sentimenta­is que só fazem sentido para mim.

Isso na plena certeza de que as feiras desse tipo são o exemplo mais prático e cacarequei­ro da lei do eterno retorno: o que da Caçamba veio um dia à Caçamba voltará.

Até que eu mesma não voltei, por dois anos. Uma abstinênci­a não só de achados, mas do passeio e das observaçõe­s de mundo. No último domingo, mesmo com tempo nublado, resolvi regressar —e vi que a Feira da Caçamba tinha mudado.

Agora, são bem mais calçadas ocupadas. Famílias vendendo o que têm em porta-malas de carro. Nas esquinas, jovens negociam manteiga, embutidos e outros produtos de supermerca­do, enquanto um homem idoso pede ajuda para inteirar o valor de um botijão de gás. Estacionad­a embaixo do viaduto, uma moto com um capacete verde e amarelo em cima.

No que a chuva despencou, veio o desespero para recolher o que estava pelo chão. Parada diante de uma lona com brinquedin­hos do McDonald’s, uma mulher berrava, abraçada a dois meninos. “Vai passar, gente! Calma, vai passar!”

Minutos depois, realmente, parou de respingar —mas uma nuvem cinzenta continua, acima de tudo. Acima de todos.

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Marcelo Martinez

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