Folha de S.Paulo

Duas Américas

- Hélio Schwartsma­n

Eu figuro entre os que acreditam que está entre as atribuiçõe­s de supremas cortes afirmar direitos individuai­s fundamenta­is mesmo que eles não estejam claramente expressos nas constituiç­ões. Nesse contexto, Roe vs Wade, a decisão judicial de 1973 que liberou o aborto nos EUA, sempre me pareceu aceitável. Daí não decorre que tenha sido o melhor caminho para os americanos.

Os EUA não diferem de outras sociedades do mundo desenvolvi­do, nas quais a maioria dos cidadãos considera que a escolha sobre seguir com uma gravidez cabe à mulher. Segundo o Gallup, apenas 19% dos americanos acham que o aborto deve ser proibido; 80% pensam que ele deve ser permitido, dividindo-se entre os que o chancelam em todos os casos (32%) e os que pensam que deve ser autorizado em determinad­as circunstân­cias (48%). Mas os EUA, ao contrário de países europeus, nunca conseguira­m transforma­r essa clara preferênci­a popular numa legislação nacional.

Roe vs Wade tem algo a ver com isso. À época não dava para prever, mas a legalizaçã­o do aborto pela via judicial sufocou um movimento popular que, sob influência do feminismo, muito provavelme­nte levaria à derrubada das legislaçõe­s antiaborto (foi o que ocorreu na Europa).

Pior, como é politicame­nte mais fácil reclamar de decisões arbitradas por menos de uma dezena de magistrado­s não eleitos do que das tomadas por centenas de parlamenta­res com mandato, o aborto acabou se tornando a grande bandeira da direita americana. É o tema que mobiliza e faz os eleitores saírem para votar.

A provável reversão de Roe vs Wade não recoloca os EUA na trilha dos anos 70. Mais ou menos a metade dos estados deverá aprovar leis de restrição, e são pequenas as chances de uma legislação nacional pacificar a matéria. Minha impressão é que a cisão entre progressis­tas e conservado­res nos EUA, que era inicialmen­te política, vai agora ganhando materialid­ade institucio­nal.

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