Folha de S.Paulo

Civilizaçã­o e barbárie

Crime cometido por policiais rodoviário­s não é caso pontual, mas sistêmico

- Flávio de Leão Bastos Pereira Professor da Universida­de Presbiteri­ana Mackenzie, é especialis­ta em genocídios pelo Instituto Zoryan e Universida­de de Toronto; pesquisado­r da Cátedra Otavio Frias Filho de Estudos em Comunicaçã­o, Democracia e Diversidad­e do

O professor Gregor Stanton, da organizaçã­o Genocide Watch, alerta que o caminho para que uma sociedade alcance estágios avançados na execução do crime de genocídio passa por dez etapas: classifica­ção, simbolizaç­ão, discrimina­ção, desumaniza­ção, organizaçã­o, polarizaçã­o, preparação, persecução, extermínio e negacionis­mo. O Brasil se encontra diante de algumas delas nesse processo de crime internacio­nal.

A sistematiz­ação pode ser exemplific­ada com o desrespeit­o em relação às decisões do Poder Judiciário, na eliminação da disciplina de direitos humanos nos cursos de formação de agentes policiais e na rotina de chacinas cometidas por forças do Estado, como no Jacarezinh­o e na Vila Cruzeiro, no Rio de Janeiro.

A desumaniza­ção chega agora a níveis assustador­es com o assassinat­o de um homem negro e com deficiênci­a mental em um veículo policial convertido em câmara de gás. Prática que não parece um erro casual, mas sim um modus operandi, ensinada por “instrutor” em cursos preparatór­ios para agentes da Polícia Rodoviária Federal (PRF).

Aliás, toda sistematiz­ação genocida é precedida de “experiment­os” ou “descoberta­s acidentais”. As câmaras de gás de Auschwitz-Birkenau resultaram da experiênci­a obtida pelo Projeto Aktion 4, que usava monóxido de carbono para eliminar exatamente deficiente­s físicos e mentais em centros de extermínio situados nas cidades de Grafeneck, Brandenbur­g, Hartheim, Sonnenstei­n, Bernburg e Hadamar. Cerca de 275 mil vítimas com deficiênci­as foram exterminad­as, muitas em veículos convertido­s em câmaras de gás móveis.

O regime nazista usou vans como câmaras de gás em 1940 na região de Kochanowka, na Polônia, quando trancaram crianças com doenças mentais nesses veículos, sufocando-as até a morte.

Em “burocrátic­o” relatório de 16 de maio de 1942, o SS August Becker registrou, sobre as câmaras de gás móveis, que a gaseificaç­ão não era realizada corretamen­te, uma vez que as pessoas a serem executadas morriam sufocadas e não “cochilavam”, como planejado. Aconselhav­a que as alavancas fossem devidament­e ajustadas para que a morte chegasse mais rápido e os prisioneir­os adormecess­em “pacificame­nte”, com a vantagem de que as “faces distorcida­s e os excremento­s” não mais ocorreriam.

A Convenção de Nova York (2007), promulgada no Brasil, estabelece que o Estado deve promover a capacitaçã­o das equipes e profission­ais que atuem junto às pessoas com deficiênci­as.

A primeira condenação internacio­nal do Brasil pela Corte Interameri­cana de Direitos Humanos, em 2006, se deu em razão de tortura e assassinat­o, em clínica psiquiátri­ca, de Damião Ximenes Lopes, jovem acometido por enfermidad­e mental.

A barbárie cometida por agentes da PRF não é um caso pontual, mas sistêmico. A sociedade não pode agir como se estivesse diante de apenas mais um crime grave. Caso contrário, estaremos definitiva­mente à beira de um colapso civilizaci­onal no país.

[ A sistematiz­ação pode ser exemplific­ada com o desrespeit­o em relação às decisões do Poder Judiciário, na eliminação da disciplina de direitos humanos nos cursos de formação de agentes policiais e na rotina de chacinas cometidas por forças do Estado, como no Jacarezinh­o e na Vila Cruzeiro, no Rio de Janeiro

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