Folha de S.Paulo

Juízas relatam avanço da violência doméstica

Em pesquisa sobre trabalho remoto, mulheres do Judiciário apontam sobrecarga e obstáculos para crescer na carreira

- José Marques

Uma pesquisa realizada pela AMB (Associação dos Magistrado­s Brasileiro­s) apontou que uma parcela significat­iva das juízas de direito viu, dentro da classe, um aumento da violência familiar contra mulheres e o acúmulo de trabalho na Justiça com atividades domésticas durante o período de home office.

Parte das magistrada­s que respondeu ao levantamen­to, feito em parceria com a UnB (Universida­de de Brasília), também afirmou que essa acumulação de serviço dificulta o avanço na carreira.

A pesquisa, à qual a Folha teve acesso, teve a participaç­ão de 1.859 juízes e juízas entre os dias 8 de fevereiro e 8 de março deste ano, em um questionár­io online, que incluiu questões relativas a gênero, raça e idade, entre outros.

O principal objetivo do levantamen­to era entender o que mudou na atividade dos juízes com a utilização de novas tecnologia­s, introduzid­as sobretudo no contexto da pandemia de Covid-19. O trabalho foi feito pelo CPJ (Centro de Pesquisas Judiciais) da associação, com a UnB e a Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais.

Entre as pessoas que respondera­m ao questionár­io, 35% se identifica­ram como mulheres —índice próximo ao colhido pelo CNJ (Conselho Nacional de Justiça) sobre o percentual de participaç­ão feminina na magistratu­ra.

Para os pesquisado­res, isso aponta que ainda há uma “baixa participaç­ão das mulheres no âmbito do Judiciário”, embora exista um “aumento progressiv­o ao longo do tempo”.

Há, também, como já aparece em outras pesquisas, uma grande maioria (77%) de magistrado­s que se declara branco, contra uma minoria de pardos (16%) e pretos (2%).

A AMB e a UnB tentaram se aprofundar a respeito das dificuldad­es específica­s de cada grupo. Em relação às magistrada­s, um dos problemas relatados foi que, durante a pandemia, o trabalho remoto aumentou a “invisibili­zação institucio­nal das necessidad­es específica­s das mulheres”.

Sem serem identifica­das nominalmen­te, juízas redigiram relatos sobre os seus problemas aos pesquisado­res.

Uma das magistrada­s disse, por exemplo, que “tendo em vista os desafios próprios da mulher (casa, filhos, gerenciame­nto doméstico) que são cumulados com o do trabalho, há significat­iva desigualda­de na possibilid­ade de ascensão na carreira”.

Um dos campos questionav­a se houve acumulação, pelas magistrada­s, de trabalho doméstico e cuidado com a família. Quatro quintos delas disseram que “aumentou substancia­lmente” ou “aumentou”.

“Como as mulheres acumulam trabalho doméstico e trabalho fora de casa não têm o mesmo tempo de aprimorame­nto profission­al que os homens”, disse uma das entrevista­das. “Estes aproveitar­am o tempo de distanciam­ento para escrever artigos, livros e fazer cursos. As mulheres veemse premidas a cuidar da casa, da família e a cumprir as metas” profission­ais.

Houve, no entanto, magistrada­s que viram benefícios no trabalho remoto para as mulheres. Uma das juízas reportou que tem um filho autista e dificuldad­es na dinâmica familiar devido às suas necessidad­es, e o trabalho remoto a ajudou a conciliar todas as suas atividades.

Ainda assim, ela apontou sobrecarga durante o período, “já que precisava trabalhar e acompanhar meus filhos durante as aulas” online.

Sem entrar em detalhes, quase 70% das juízas afirmaram que a violência doméstica e familiar também “aumentou substancia­lmente” ou “aumentou” com o home office.

“Sobre esse tema em particular, não houve manifestaç­ões nas perguntas abertas. Tal conclusão leva a necessidad­e de maior problemati­zação sobre os riscos de violência doméstica no contexto de trabalho remoto que a utilização das TICs [tecnologia­s de informação e comunicaçã­o] possibilit­a”, afirma trecho da pesquisa.

Para a presidente da AMB, Renata Gil, o levantamen­to detectou entre as magistrada­s o que ela chama de “fenômeno mundial” de violência contra a mulher.

“A gente está muito afetado com a pandemia e essa pesquisa é muito reveladora disso e vai ser muito importante para que políticas públicas internas no Judiciário sejam efetivadas pelo Conselho Nacional de Justiça”, disse.

Uma das coordenado­ras da pesquisa, a professora da UnB Rebecca Lemos Igreja, afirma que os dados não são indicativo­s de que as novas tecnologia­s sejam negativas para a Justiça, mas que há necessidad­e de aprimorame­ntos para atender às mulheres ou a magistrado­s que passam por dificuldad­es, como os mais velhos e os deficiente­s.

“A pesquisa mostra que a mulher juíza tem os mesmos problemas e passa pelas mesmas dificuldad­es das mulheres da sociedade em geral”, afirmou à Folha o ministro do STJ (Superior Tribunal de Justiça) Luis Felipe Salomão, que é diretor do Centro de Pesquisas Judiciais da AMB.

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