Juízas relatam avanço da violência doméstica
Em pesquisa sobre trabalho remoto, mulheres do Judiciário apontam sobrecarga e obstáculos para crescer na carreira
Uma pesquisa realizada pela AMB (Associação dos Magistrados Brasileiros) apontou que uma parcela significativa das juízas de direito viu, dentro da classe, um aumento da violência familiar contra mulheres e o acúmulo de trabalho na Justiça com atividades domésticas durante o período de home office.
Parte das magistradas que respondeu ao levantamento, feito em parceria com a UnB (Universidade de Brasília), também afirmou que essa acumulação de serviço dificulta o avanço na carreira.
A pesquisa, à qual a Folha teve acesso, teve a participação de 1.859 juízes e juízas entre os dias 8 de fevereiro e 8 de março deste ano, em um questionário online, que incluiu questões relativas a gênero, raça e idade, entre outros.
O principal objetivo do levantamento era entender o que mudou na atividade dos juízes com a utilização de novas tecnologias, introduzidas sobretudo no contexto da pandemia de Covid-19. O trabalho foi feito pelo CPJ (Centro de Pesquisas Judiciais) da associação, com a UnB e a Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais.
Entre as pessoas que responderam ao questionário, 35% se identificaram como mulheres —índice próximo ao colhido pelo CNJ (Conselho Nacional de Justiça) sobre o percentual de participação feminina na magistratura.
Para os pesquisadores, isso aponta que ainda há uma “baixa participação das mulheres no âmbito do Judiciário”, embora exista um “aumento progressivo ao longo do tempo”.
Há, também, como já aparece em outras pesquisas, uma grande maioria (77%) de magistrados que se declara branco, contra uma minoria de pardos (16%) e pretos (2%).
A AMB e a UnB tentaram se aprofundar a respeito das dificuldades específicas de cada grupo. Em relação às magistradas, um dos problemas relatados foi que, durante a pandemia, o trabalho remoto aumentou a “invisibilização institucional das necessidades específicas das mulheres”.
Sem serem identificadas nominalmente, juízas redigiram relatos sobre os seus problemas aos pesquisadores.
Uma das magistradas disse, por exemplo, que “tendo em vista os desafios próprios da mulher (casa, filhos, gerenciamento doméstico) que são cumulados com o do trabalho, há significativa desigualdade na possibilidade de ascensão na carreira”.
Um dos campos questionava se houve acumulação, pelas magistradas, de trabalho doméstico e cuidado com a família. Quatro quintos delas disseram que “aumentou substancialmente” ou “aumentou”.
“Como as mulheres acumulam trabalho doméstico e trabalho fora de casa não têm o mesmo tempo de aprimoramento profissional que os homens”, disse uma das entrevistadas. “Estes aproveitaram o tempo de distanciamento para escrever artigos, livros e fazer cursos. As mulheres veemse premidas a cuidar da casa, da família e a cumprir as metas” profissionais.
Houve, no entanto, magistradas que viram benefícios no trabalho remoto para as mulheres. Uma das juízas reportou que tem um filho autista e dificuldades na dinâmica familiar devido às suas necessidades, e o trabalho remoto a ajudou a conciliar todas as suas atividades.
Ainda assim, ela apontou sobrecarga durante o período, “já que precisava trabalhar e acompanhar meus filhos durante as aulas” online.
Sem entrar em detalhes, quase 70% das juízas afirmaram que a violência doméstica e familiar também “aumentou substancialmente” ou “aumentou” com o home office.
“Sobre esse tema em particular, não houve manifestações nas perguntas abertas. Tal conclusão leva a necessidade de maior problematização sobre os riscos de violência doméstica no contexto de trabalho remoto que a utilização das TICs [tecnologias de informação e comunicação] possibilita”, afirma trecho da pesquisa.
Para a presidente da AMB, Renata Gil, o levantamento detectou entre as magistradas o que ela chama de “fenômeno mundial” de violência contra a mulher.
“A gente está muito afetado com a pandemia e essa pesquisa é muito reveladora disso e vai ser muito importante para que políticas públicas internas no Judiciário sejam efetivadas pelo Conselho Nacional de Justiça”, disse.
Uma das coordenadoras da pesquisa, a professora da UnB Rebecca Lemos Igreja, afirma que os dados não são indicativos de que as novas tecnologias sejam negativas para a Justiça, mas que há necessidade de aprimoramentos para atender às mulheres ou a magistrados que passam por dificuldades, como os mais velhos e os deficientes.
“A pesquisa mostra que a mulher juíza tem os mesmos problemas e passa pelas mesmas dificuldades das mulheres da sociedade em geral”, afirmou à Folha o ministro do STJ (Superior Tribunal de Justiça) Luis Felipe Salomão, que é diretor do Centro de Pesquisas Judiciais da AMB.