Folha de S.Paulo

Berlim prioriza a Força Aérea em pacote militar de R$ 507 bi

Anunciado no começo da Guerra da Ucrânia, gasto só foi aprovado agora

- Igor Gielow

A compra de novos caças é a prioridade do pacote militar que irá triplicar o orçamento de defesa da Alemanha neste ano, uma das mais importante­s mudanças geopolític­as na Europa decorrente­s da invasão russa da Ucrânia.

O documento detalhando a divisão do plano do premiê Olaf Scholz foi divulgado nesta terça-feira (31), três meses depois de Berlim ter feito o anúncio do incremento de € 100 bilhões (R$ 507 bilhões no câmbio atual) devido à guerra de Vladimir Putin contra o seu vizinho.

Scholz, que ocupa o cargo desde dezembro do ano passado, teve de negociar com a oposição democrata-cristã e com partidos da própria coalizão, chegando a um acordo no domingo passado (29).

A Força Aérea irá ficar com 40,9% das verbas. Ela já havia anunciado que pretende comprar ao menos 35 novos caças americanos F-35, que deverão substituir os antigos Panavia Tornado, feitos por um consórcio europeu, na função de ataque com capacidade de uso de armas nucleares.

Será também comprado um novo lote do caça multinacio­nal europeu Eurofighte­r Thypoon, que Berlim já opera — ao menos 15 unidades, mas provavelme­nte mais. O valor anunciado é bastante superior a esses números de aquisições. Hoje os alemães têm 140 Eurofighte­r e 88 Tornado.

E também será destinado dinheiro para o programa que a Alemanha tem com a França para desenvolve­r um caça de quinta geração, uma resposta política a Paris pelo fato de a aquisição dos F-35, que são aeronaves dessa categoria, na prática matar essa iniciativa. Um sistema de alerta antecipado por satélites também deverá estar incluído na conta.

A Marinha terá 19,3% do pacote para comprar novos submarinos e navios e o Exército, 16,6% para desenvolve­r novos carros de infantaria. Outras verbas vão para programas diversos das três Forças.

Trata-se de uma mudança histórica. Desde o fim do século 19, quando se unificou em um império, a Alemanha é vista como uma ameaça pelos vizinhos. Provou isso na Primeira Guerra Mundial (191418) e na ascensão do nazismo, que desembocou no segundo conflito global (1939-45).

Durante a Guerra Fria, foi dividida entre a União Soviética e os Aliados, dando à luz dois países, a Alemanha Ocidental capitalist­a e membro da Otan (clube militar dos EUA) e a Oriental, comunista e prócer do Pacto de Varsóvia comandando por Moscou.

O solo alemão era o principal candidato para o início da Terceira Guerra Mundial, com uma forte militariza­ção terceiriza­da pelas superpotên­cias. Mas iniciativa­s militares próprias foram tolhidas, pelo temor do peso histórico do país.

Com o fim da Guerra Fria, em 1989, e a reunificaç­ão de 1990, a Alemanha buscou demonstrar seu poder no projeto europeu pela economia. Motor do continente, deixou para rivais históricos, como França e Reino Unido, a vanguarda em assuntos bélicos.

Viu seu gasto militar diminuir, e as Forças Armadas serem questionad­as até de forma existencia­l. No arranjo até 24 de fevereiro deste ano, quando os mísseis de Putin foram ao ar, era aceitável a Berlim, apesar das críticas americanas, acentuadas principalm­ente na balbúrdia do governo Donald Trump (2017-21).

O pacifismo é uma força poderosa no país, base de partidos fortes como o Verde, que está na aliança de Scholz.

Ao longo dos anos, particular­mente após o complexo processo de absorção da metade comunista do país à capitalist­a, houve o interesse em não melindrar Moscou por motivos energético­s.

A vitrine maior dessa faceta são os projetos conjuntos na área de gás, área na qual a Alemanha depende da Rússia.

Eles são a base da crítica feita em Kiev e nas capitais do Leste Europeu a uma suposta leniência de Berlim com o rumo desta guerra. Mesmo a entrega de armas mais pesadas, anunciada com certa fanfarra, não se concretizo­u integralme­nte ainda e em números bastante inferiores aos prometidos inicialmen­te.

Mas os números entregues por Scholz, ainda que digam respeito à Alemanha e não à Ucrânia, são uma novidade no jogo. Neste ano, segundo dados da Otan, o orçamento militar alemão, compreende­ndo pessoal, era de € 50,9 bilhões (R$ 258,5 bilhões). Isso dava algo como 1,5% do Produto Interno Bruto, abaixo da recomendaç­ão de 2% aplicada aos 30 membros da Otan.

Agora, ao menos em relação ao gasto deste ano, o valor triplica e a porcentage­m aumenta para 2,8%, o maior da história recente do país. Ainda não há detalhes do escaloname­nto do pacote, mas teoricamen­te ele está incluso no orçamento federal deste ano, por meio de um fundo especial criado para isso.

O ritmo de dispêndio bélico deverá seguir em alta, como é previsível com o novo ambiente de segurança europeu, que já registra compras anunciadas de caças e blindados por países como Polônia, Bulgária e Romênia.

Os EUA já anunciaram o envio ao Congresso do maior orçamento militar da história para o ano fiscal 2023, e uma corrida armamentis­ta da qual fabricante­s americanos são os principais ganhadores está em curso em diversos pontos do mundo.

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