Piadas sobre comunidade trans são só isso, piadas, num mar de outros tabus polêmicos
É estranho voltar a este jornal para falar sobre mais um especial de comédia produzido pela Netflix, por outro grande astro da comédia mundial —minha última colaboração foi sobre o caso do humorista Dave Chappelle, acusado de fazer piadas transfóbicas pela comunidade LGBTQIA+ americana.
Ricky Gervais é um comediante e ator britânico, conhecido por seu humor ácido e provocativo e cujas piadas só mesmo um grande astro, ou alguém que sabe do que está falando, consegue sustentar no palco. Ele está dando o que falar com seu último especial por fazer piadas com pessoas transgênero. A comunidade LGBTQIA+ tachou as piadas do humorista de transfóbicas e organizou um grande movimento de “cancelamento”.
Em algum momento, acreditei que essas piadas poderiam ser apenas uma forma de chamar a atenção, já que o próprio Gervais ressaltou que o especial “SuperNatureza” seria o seu último. Mas qual seria o intuito de alguém tão renomado ir por esse caminho? Creio que provocar.
Em contrapartida —e mais uma vez, esta é a minha opinião—, acho uma bobagem levar essas piadas ao pé da letra. Estamos falando de um standup. Me surpreenderia caso o que ele fala fosse dito de uma forma intolerante e sem critério. Porém, ele emenda cada uma das piadas com o quanto estamos fadados a achar que tudo deve ser cancelado.
Em momento algum o ódio transparece em suas palavras, mas sim a ironia desse “novo” universo. Pelo contrário —“falo sobre fome, câncer, estupro, pedofilia, mas a única coisa que não se deve brincar é a política de identidade de gênero”, ele discursa a certa altura. Depois afirma com todas as letras que é a favor dos direitos da comunidade transgênero.
Estamos vivendo num mundo em que teremos homens com vagina e mulheres com pênis. Seria no mínimo estranho que a comunidade LGBTQIA+ se prendesse ao cancelamento de humoristas por piadas sobre isso, ao passo que outros assuntos tabus são abordados no mesmo show.
A comédia já é um misto do que é engraçado e do que pode vir a se tornar, mas até que ponto piadas sobre a pauta trans são entendidas como algo “politicamente incorreto”? Tenho algumas ressalvas sobre esse tema específico.
No show, que dura cerca de uma hora e 20 minutos, Ricky Gervais ainda fala sobre Aids, mulçumanos e outros temas tabus de maneira irônica e um tanto quanto polêmica. Mas segue levantando temas cotidianos, como sua relação com seus gatos e namoros, enfatizando o quanto está chata a dita militância e o fato de que minoria nada mais é do que cada um, com sua visão particular —ele mesmo se intitula minoria, parte do 1% dos homens brancos, héteros e multimilionários do mundo.
Como comediante de standup, entendo tudo que ele fala, e a maneira como fala. Entendo o seu humor também. Porém, dentro da comunidade LGBTQIA+, ainda existe um certo receio de como abordar esses assuntos sem parecer ofensivo e grosseiro. Tanto é que, ao final do especial, ele reforça o apoio que dá à causa trans e a toda a comunidade.
Talvez eu esteja consumindo muita comédia cis e hétero. Mas talvez esteja entendendo apenas que as piadas de Gervais são só isso, piadas. E podem ser interpretadas de todas as formas e maneiras possíveis, desde que se proponham ao único e exclusivo objetivo —a graça, a risada e o divertimento. Fora disso, são apenas ofensas.