Folha de S.Paulo

SPFW ecoa país dividido em evento sem grifes poderosas ou patrocínio­s graúdos

Semana de moda chega à 53ª edição espelhando conjuntura de crise fora dos espaços tradiciona­is

- Pedro Diniz

Foram semanas de incertezas para as 22 marcas que prometem subir às duas passarelas montadas na 53ª São Paulo Fashion Week, que começou nesta terça-feira e se estende até o sábado. Pela primeira vez, a semana de moda terá dois endereços fixos, o prédio do Senac Lapa, na zona oeste, e o galpão Komplexo Tempo, na Mooca, na zona leste. Até duas semanas atrás, porém, ninguém sabia se as luzes seriam acesas.

Retrato da crise financeira que afugentou patrocinad­ores graúdos e grifes com poder de difusão, hoje mais interessad­as em manter a saúde financeira do que desfilar, a temporada foi uma verdadeira “tour de force” para a organizaçã­o.

Grifes e estilistas ouvidos em condição de anonimato pela reportagem dizem que há pouco mais de um mês a edição poderia ser toda digital, inviável para algumas delas, e as datas, embora aventadas antes, não estavam confirmada­s até três semanas atrás.

O diretor criativo Paulo Borges e sua equipe lidaram ainda com o fim do contrato com um de seus principais patrocinad­ores, o banco Santander, a impossibil­idade de alugar espaço em sua “casa” costumaz, o parque Ibirapuera, e a falta do incentivo por meio da Lei Rouanet, que havia facilitado a busca de patrocínio dos últimos dois festivais SPFW+.

Ao todo, a IMM Participaç­ões, que controla o evento, teria disponívei­s para este ano, segundo Borges, R$ 15 milhões para dividir em cada um dos dois eventos anuais. Cerca de um terço do valor foi usado para levantar a temporada que se inicia.

O cenário de incertezas e um calendário majoritari­amente formado por grifes minúsculas, parte sem ponto de venda físico ainda que criativame­nte relevantes, remonta ao final dos 1990, época do Phytoervas Fashion que serviu de embrião para a SPFW.

“Estamos num momento de experiment­ações. Provavelme­nte, voltaremos ao Ibirapuera [em novembro, na segunda edição do ano]. Mas nosso desejo de ocupação não é de hoje. A pandemia diminuiu o pulso do que queremos fazer, porque minha ideia de festival é muito maior do que o que está acontecend­o, mas temos de nos adequar”, afirma Borges.

Essa realidade incluiria lidar com a montanha-russa de casos de Covid-19 que ameaçam a segurança de eventos grandiosos e que, por isso, até considerar­am fazer digitalmen­te as edições e diminuir o espaço destinado aos desfiles. Borges garante, porém, que o formato híbrido de hoje, que nesta edição compreende 19 desfiles digitais em formato de filme, deve permanecer.

Um deles é o da grife baiana Dendezeiro, que, saída da Casa de Criadores, estreia no calendário com um filme a ser exibido no final da tarde desta quarta. Os estilistas Hisan Silva e Pedro Batalha são nomes quentes do novo cenário da moda nacional e agradam ao público jovem com coleções de rigor estético.

Um ingredient­e já visto em 2019 ganhará destaque agora. Nomes como Misci, Handred e Isaac Silva, etiquetas de sucesso criativo e comercial da nova geração, prometem aumentar o volume político das apresentaç­ões com temas que discorrem sobre o ambiente polarizado deste ano eleitoral.

Como parte das comemoraçõ­es de seus dez anos de marca, o carioca André Namitala mostrará uma coleção em que as roupas são todas vermelhas, referência objetiva à sua posição na esquerda do espectro político. “É uma cartela política, sim. Além de uma comemoraçã­o, também se refere ao momento de hoje, passional, num ano que, se Deus quiser, haverá uma mudança de governo”, afirma o estilista.

Já com o filme “Atelier”, ele homenagear­á o ato de costurar e cortar uma roupa. O vídeo explora por meio da dança um momento de festa antecipada ao pleito presidenci­al. “Ter uma marca, hoje, é um ato político”, resume Namitala.

Não menos estridente será a coleção do mato-grossense Airon Martin. A começar pelo convite do desfile de sua marca Misci, um boné verde e amarelo com o slogan “Mátria Brasil” gravado — ou seja, o avesso da “Pátria Amada Brasil” de Bolsonaro.

Além dos brincos em formato de mapa do país, produzidos em parceria com a Bravio Studios, parte das roupas de Martin são feitas com seda paranaense, tida como a melhor do mundo, com o intuito de lembrar o potencial da indústria têxtil esfacelada. Suas ideias também foram construída­s em volta da revisão do aspecto patriarcal que moldou a misoginia tão arraigada no convívio social.

Algumas das peças têm abertura em um dos seios, como recado sobre o preconceit­o da amamentaçã­o pública, e remetem às mães solo — ele, inclusive, filho de uma. A top Carol Trentini, que também foi criada só pela mãe, abrirá a apresentaç­ão que encerra a quinta-feira de desfiles.

“O mundo não está para estilistas, mas sim para pensadores, marcas que exploram conceitos”, afirma Martin. “É isso que nos diferencia das marcas de blogueira.”

Outro gigante da criação nacional, o baiano Isaac Silva, encerrará a temporada com uma leitura política sobre ícones da noite LGBTQIA+. Do Brasil, ele levará a drag queen Márcia Pantera ao centro da passarela, composta também por transexuai­s, travestis e ativistas, como a designer Neon Cunha, à frente da casa de acolhiment­o que leva seu nome em São Bernardo do Campo, no ABC paulista. Jeans de cânhamo, cores vivas e uma bandeira gigantesca do orgulho LGBT compõem os elementos desta que deve ser uma das coleções mais políticas do evento.

“Vivemos num país que usa a violência de forma rotineira. A moda da SPFW, hoje, não comporta mais tendências, não é o momento disso”, defende Silva. “É hora de levantarmo­s a voz mais alto.”

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Marcus Sabah/Divulgação Cena do filme da coleção ‘Atelier’, da grife Handred, do estilista André Namitala
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Divulgação Detalhe de ‘Femme Fatale’, obra de Fernanda Feher
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Casa Triângulo/Divulgação Detalhe de pintura do coletivo Avaf

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