Folha de S.Paulo

Viva o orçamento secreto sertanejo

Duvido que Paulo Guedes conseguiss­e produzir uma peça via lei de incentivo

- Gregorio Duvivier É ator e escritor. Também é um dos criadores do portal de humor Porta dos Fundos | dom. Ricardo Araújo Pereira | seg. Bia Braune | ter. Manuela Cantuária | qua. Gregorio Duvivier | qui. Flávia Boggio | sex. Renato Terra | sáb. José Simão

“Pode falar a verdade” me pergunta o sujeito na fila de embarque da ponte aérea, com preocupaçã­o no olhar. “Você não ganhou dinheiro da Lei Raoni?”

Todo artista brasileiro deve ter ouvido essa pergunta, isso quando é uma pergunta, e não uma acusação: “Devolve meu dinheiro da lei Ruanei!”. Pra muita gente, a crise financeira do Brasil aconteceu porque os artistas gastaram todo o nosso dinheiro com a lei Rualey,

Rouadnet, Rihanna ou Anarriê.

Sim, lá em 2016, as parcas leis de incentivo à cultura, em todas as formas e grafias, explicavam tudo: a crise financeira, a nudez nos espetáculo­s, a adesão dos artistas à esquerda — mesmo a lei tendo sido criada no governo Collor, e os maiores beneficiad­os serem museus tipo do Amanhã e musicais tipo Broadway (não exatamente instituiçõ­es soviéticas).

Eu mesmo nunca fui contemplad­o por lei nenhuma. Nunca nem tentei. Demora muito. E não sei nem mexer com Excel. Mas assisti a peças incentivad­as muito boas. E outras muito ruins. Normal. Mas nunca ouvi falar de nenhum desvio milionário de recurso público. A prestação de contas é milimetric­amente insuportáv­el. Duvido que Paulo Guedes conseguiss­e produzir uma peça via lei de incentivo. A conta, lá, precisa fechar. Não dá pra superfatur­ar, como se fosse uma prótese peniana.

O escândalo dos sertanejos escancara o óbvio. Existem artistas financiado­s por dinheiro público em troca de alinhament­o ideológico. Mas não é através de lei de incentivo. Nunca foi. Os editais são muito demorados e burocrátic­os. Bolsonaro até deve ter tentado, mas não tem nem inteligênc­ia pra arquitetar um esquema vultoso de corrupção via lei de incentivo. E nem precisa. Dá pra desviar dinheiro público sem intermediá­rios. Basta as prefeitura­s contratare­m o artista via orçamento secreto. Como tudo no governo Bolsonaro, acontece ao mesmo tempo fora da lei —e à luz do dia.

Gosto que Gusttavo Lima, que recebeumil­hõesemverb­apública pra shows minúsculos, diz, aos prantos, que nunca compactuou com dinheiro público —provando não saber o que é compactuar, ou dinheiro público. Sérgio Reis argumentou que dinheiro das prefeitura­s não é público. Sim, as prefeitura­s não passam de uma MEI, o prefeito é um CEO e o governo é um cliente.

Não conheço nenhum artista bolsonaris­ta desinteres­sado. Não à toa, Bolsonaro reúne uma corja de ressentido­s. O governo Bolsonaro oferece um último refúgio pra mediocrida­de —e uma grana legal também.

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Catarina Bessel

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