Leonard Cohen é cafona e sincero em ‘A Chama’
Livro reúne poemas, autorretratos e rascunhos em que transbordam suas ruminações erótico-existenciais que valem a pena
Num dos poemas de “A Chama”, lemos que, assim como lagos e montanhas, o ego é uma criação divina e que, por isso, o ser humano não deve ter vergonha de falar de si mesmo —de dizer “eu” e “meu”. Entre tantos versos que tratam da própria experiência, tal autocomplacência seria quase intragável, não fosse o carisma absurdo de Leonard Cohen.
Livros de espólio são estranhos —dedicados sobretudo a fãs, quase sempre são obras cujo único propósito é acalentar corações partidos. Os melhores casos trazem algo de valor que o autor não concluiu, mas só em situações raras são publicados rascunhos cujo interesse ultrapassa o afetivo ou o arquivístico.
Publicado originalmente em 2018, dois anos após a morte de Cohen, “A Chama” —“The Flame”, no original— traz de tudo isso um pouco e chega agora ao Brasil em ótima tradução, de Caetano W. Galindo, que inclui ao fim os textos originais.
O livro reúne poemas inéditos e letras de quatro álbuns, além de desenhos (principalmente autorretratos), anotações de diários, um discurso de agradecimento e uma troca de emails com um amigo, que se encerra menos de 24 horas antes de sua morte. “Foi muito divertido. Fiquem bem, caros amigos”, escreve ele quase ao fim. Como não se comover?
Seria bobo esperar o imprevisível de alguém que se foi aos 82 anos, após 14 álbuns de estúdio e uma dúzia de livros de poesia e ficção. Em “A Chama”, Cohen ainda canta o desejo amoroso e a tensão entre o mundano e o divino, masa perspectiva—ade um homem que se aproxima da morte—éo que muda tudo.
Temos aqui um dos poucos casos em que faz sentido festejaras ruminações erótico existenciais de um homem idoso, branco, rico e famoso.*
“A Chama” é o último empenho para que o inevitável seja evitado. Trazendo escritos que remontam aos anos 1970, o conjunto carrega um olhar que aponta de 2016 para trás —os 63 poemas foram revisados nos últimos anos de vida por Cohen, e os rascunhos foram selecionados a partir de anotações transcritas sob sua supervisão. Estes, aliás, ocupam mais de um terço do livro e são o que ele tem de melhor.
Leonard Cohen foi perdendo o medo de ser cafona. Às vezes isso deu certo, às vezes foi um erro, e a dualidade aparece bem nos poemas acabados. Já na liberdade das anotações, vemos como ele chafurda na cafonice e se diverte nela, alternando momentos comoventes e outros deliberadamente patéticos.
Em um poema, na idade tardia, “o desejo se ajoelha/ como um bezerro/ na palha do espanto” (“Dimensões do Amor”). Nas anotações, o “comandante Cohen está ferido/ de velhice ou de paixão” e ele, “que tem cem amantes/ vestido de monge/ pede um copo d’água/ para um enxame de moscas”.
O tradutor teve o intuito declarado, e na maior parte acertado, de optar por uma tradução “literária” das letras e poemas, privilegiando a fluência. Em português, fica claro como os versos frequentemente se valem de imagens que se tornaram há séculos lugares-comuns da lírica amorosa. Há quem diga que isso é suficiente para tirar a carteirinha de poeta do autor, e este era o primeiro a reconhecer a sua própria limitação.
O efeito de Cohen sobre o leitor mostra, porém, que a poesia não se esgota na novidade da linguagem e que, às vezes, a sinceridade tem sua virtude, desde que encarada “nos limites estritos da dignidade e da beleza”, como o próprio afirmou em 2011.
Ainda assim, talvez seja perigoso deixar “A Chama” ao alcance de adolescentes que acreditem que a poesia é feita de sentimentos escancarados em rimas. Nem todas as pessoas podem ser Leonard Cohen, e é difícil explicar o que faz a diferença.