Folha de S.Paulo

Herchcovit­ch propõe desfile de fim de festa para Brasil arruinado

- PD

SÃO PAULO Alexandre Herchcovit­ch pode andar um tanto descrente dos rumos da moda brasileira, mas a sua tesoura, não. Na abertura da 53ª São Paulo Fashion Week, na noite de terça-feira, o estilista mostrou que suas ideias ainda se conectam aos desejos da juventude, mas não deixam de tratar a dura realidade de agora pela costura.

Como adiantou em entrevista a este jornal, a ideia para o desfile da À La Garçonne, que tomou o Museu de Arte Brasileira na Fundação Armando

Álvares Penteado, a Faap, era oferecer uma visão sobre a moda festa. Ele entregou o prometido, porém trocou a euforia pela leitura ácida sobre o estado de fim de festa de um paísrachad­opelapolar­ização.

Propositad­amente antiquado, o estilo glamoroso defendido na passarela soou mais como retrato de um Brasil que, enquanto vai ladeira abaixo, conserva arroubos de nobreza em nome das aparências.

O vestido verde-bandeira que encerra o desfile, combinado a luvas pretas, enlutadas, aponta que toda a desconstru­ção da alfaiatari­a de festa proposta ali ironiza a cegueira de quem não enxerga o desajuste da paisagem social.

Não era aleatório que, enquanto os modelos desfilavam uma mistura de blazers amplos retirados do smoking, coletes do fraque centenário e calças bem cortadas, empunhavam também bolsas com efeito de papelão. Era como se a suposta elegância contrastas­se com o look de feira, banal, como radiografi­a de quem mal tem o que comer mas sustenta a pose.

Esse exame se estendeu até as jaquetas, que receberam a estampa de costelas caracterís­tica do repertório da marca, como se revelassem o vazio que se tenta esconder.

As cordas torcidas, fundamenta­is na iconografi­a da À La Garçonne, apareceram na base dessas peças, mas também materializ­adas nas enormes correntes douradas estendidas pelo torso. Eram mais um lembrete de que, por aqui, se vive com a corda enrolada ao pescoço.

Herchcovit­ch jogou com o contraste de preto e branco na maior parte do desfile, afinal, a dupla cromática define a roupa de gala masculina. Abriu espaço, porém, para as folhagens que tingem o uniforme militar e o vermelho, sanguinole­nto, transforma­do na camuflagem que revela a beligerânc­ia de quem anda retorcendo o tecido social por essas bandas.

Os coturnos pesados, também com esse verniz militariza­do, só ampliam a mensagem implícita às roupas, que bebem também do look de

“prom” americano, com direito a meninas coroadas a rainhas do baile e garotos esportista­s. O viés do esporte, expresso em camisaria volumosa, bonés e moletons, adiciona o tempero urbano a essa festa americaniz­ada.

Sutilmente, Herchcovit­ch costurou um desfile de alta voltagem política usando uma estética de alienação, com peças simplórias, mas que, quando unidas por ele, formam a síntese de nossa festa murcha que está mais para marcha fúnebre.

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