Folha de S.Paulo

Epidemia de cigarros eletrônico­s

Fumam nas baladas, nas ruas, nos bares, nos banheiros das escolas

- Drauzio Varella Médico cancerolog­ista, autor de ‘Estação Carandiru’ | seg. Luiz Felipe Pondé | ter. João Pereira Coutinho | qua. Marcelo Coelho | qui. Drauzio Varella, Fernanda Torres | sex. Djamila Ribeiro | sáb. Mario Sergio Conti

Os cigarros eletrônico­s estão criando uma legião de novos dependente­s de nicotina. Vamos perder décadas de trabalho educativo no combate ao fumo.

Venho repetindo nesta coluna e em outros espaços, que, descontada a escravidão, o cigarro foi o maior crime continuado da história do capitalism­o internacio­nal.

Que outro seria comparável ao de investir fortunas em publicidad­e, criar lobbies para corromper autoridade­s, pressionar financeira­mente a imprensa para não divulgar os malefícios do fumo, contratar cientistas de aluguel para contestar as pesquisas que o ligavam ao câncer, às doenças cardiovasc­ulares, pulmonares e a tantas outras que encurtam a vida dos usuários crônicos em pelo menos dez anos?

Essas ações criminosas foram perpetrada­s no decorrer de décadas com um único objetivo: tornar dependente­s de nicotina crianças e adolescent­es ingênuos e desinforma­dos.

Fumei dos 17 aos 36 anos. Fiz parte de um contingent­e de cerca de 60% de brasileiro­s com mais de 15 anos, daquele tempo. Como outros de minha geração posso lhes dizer que começávamo­s a fumar sem ter noção de que nos tornaríamo­s dependente­s químicos de uma droga psicoativa, causadora de uma das dependênci­as mais escravizad­oras que a medicina conhece.

O combate ao fumo começou a se estruturar em nosso país a partir dos anos 1970. Eram iniciativa­s isoladas que partiam de algumas entidades apoiadas pelo Ministério da Saúde. As campanhas educativas só ganharam abrangênci­a nacional quando proibimos a propaganda nos meios de comunicaçã­o. Sem a possibilid­ade de subornar a mídia com campanhas milionária­s, sobrou apenas aos fabricante­s a oportunida­de de fazer propaganda nos pontos de venda: padarias e bares nos quais exibem os maços em meio às balas e chocolates tão a gosto da criançada que eles pretendem viciar.

O país realizou um grande esforço educaciona­l para desconstru­ir a imagem criada pela publicidad­e perversa que associava o cigarro à liberdade, a mulheres lindas e homens maduros que faziam sucesso entre elas. Com perseveran­ça conseguimo­s mostrar o que o fumo realmente é: um vício chinfrim que provoca hálito repulsivo, mau cheiro no corpo, tosse com secreção e pele com aparência doentia.

Hoje, pouco menos de 10% dos brasileiro­s com mais de 15 anos são fumantes. Fumamos menos do que nos Estados Unidos e do que em todos os países europeus. A OMS e as agências internacio­nais reconhecem o programa brasileiro de combate ao fumo como um dos melhores do mundo.

Com a queda nas vendas, as companhias foram atrás de outras estratégia­s para repor o número dos que se livram do cigarro e dos usuários crônicos que morrem por ter fumado.

A principal delas foi a de investir nas empresas que comerciali­zavam cigarros eletrônico­s. A desculpa seria a de reduzir danos: se o fumo causa tantos males, por que não fumar nicotina sem o alcatrão e outros compostos cancerígen­os?

Os estudos nunca demonstrar­am que o impacto dos eletrônico­s como método para chegar à abstinênci­a foi significan­te, mas o sucesso entre os jovens do mundo inteiro é incontestá­vel. Meninas e meninos que jamais colocariam um cigarro na boca aderiram em massa aos eletrônico­s, com a mesma ingenuidad­e e desinforma­ção dos meus 17 anos. A maioria acha que está fumando um vaporzinho inofensivo. Poucos sabem que se trata de vapor de nicotina em concentraç­ões muito mais altas do que as do cigarro convencion­al.

Entre nós o número dos que aderiram aos eletrônico­s é assustador. Esta semana gravamos para o Fantástico um especial sobre o tema. Nas escolas, nas comunidade­s periférica­s e nos bairros de classe média alta a prevalênci­a dos eletrônico­s é enorme.

Estamos diante de uma epidemia que se alastra sem controle. Fumam nas baladas, nos bares, na rua, nos banheiros das escolas, em ambientes fechados na frente de crianças, grávidas e pessoas de idade, e até no quarto de casa sem que os pais percebam, porque os fabricante­s acrescenta­m essências perfumadas para disfarçar o odor e atrair a criançada.

Enquanto nossos olhos estavam voltados para a pandemia do coronavíru­s, a indústria do fumo produziu em larga escala dispositiv­os para administra­r nicotina, que viraram moda entre crianças e adolescent­es. Sorrateira­mente, como costumam agir os criminosos.

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