Folha de S.Paulo

Rússia e EUA se testam aos 100 dias da guerra

Conflito mudou a geopolític­a e projeta um mundo mais perigoso, qualquer que seja o desfecho por ora imprevisív­el

- Igor Gielow

O mundo como o conhecíamo­s, em sua dinâmica geopolític­a, não é o mesmo há 100 dias. A Guerra da Ucrânia, iniciada pela Rússia de Vladimir Putin em 24 de fevereiro, já passou por três fases distintas, mas seu desfecho segue imprevisív­el.

No momento inicial, Putin achou que derrubaria o governo de Zelenski com um assalto ambicioso em diversas frentes. Com efeito, em dois dias estava lutando na periferia de Kiev, fazendo governos ocidentais preverem o fim da guerra em talvez uma semana.

Erros militares centrados no binômio força insuficien­te-falta de foco surpreende­ram analistas, que viam a Rússia numa posição superior óbvia. Armas antitanque ocidentais começaram a fluir e estragar a ilusão do Kremlin.

A fase seguinte foi o espraiamen­to dessa ofensiva inicial, com conquistas russas no sul do país, marcadas pelo brutal cerco de Mariupol. E com o fracasso russo em torno de Kiev e no norte do país.

Isso levou ao anúncio unilateral de Moscou: a guerra agora seria no Donbass, o leste russófono da Ucrânia que desde 2014 vivia um conflito separatist­a. Com isso, a derrota em torno de Kiev tornouse uma rápida retirada para fazer o que analistas viam como certo: concentrar força para um objetivo por vez.

Essa terceira etapa da carnificin­a está em curso desde o dia 18 de abril, e parece estar em um ponto culminante, com a virtual queda da província de Lugansk para Moscou e a prevista tentativa de tomada final do Donbass, na forma da vizinha Donetsk — que tem talvez metade de seu território ainda ucraniano.

Seja como for, como disse Zelenski ao pedir mais ajuda militar nesta quinta (2), 20% de seu país já está ocupado.

Os problemas militares de Putin não acabaram. Há sérias dúvidas sobre a capacidade de Moscou de seguir em sua guerra de atrito com a falta de infantaria registrada em campo, como notaram dois dos melhores analistas ocidentais do conflito, os americanos Michael Kofman (CNA) e Rob Lee (King’s College) em um artigo nesta quinta no blog War on the Rocks.

Segundo um analista militar russo, que pediu anonimato, diz, essa avaliação é realista e pode ser a senha para que Putin encerre a campanha e declare algum tipo de vitória. Mas, como ele diz, a imprevisib­ilidade é tanta que a Rússia seguir a guerra rumo à costa do mar Negro ucraniana é hipótese tão plausível quanto.

Em paralelo ao campo de batalha está o terremoto econômico e político, que apenas começou. O Ocidente aplicou sanções sem precedente­s contra Putin, isolando de diversas maneiras a economia russa. A afluente classe média se viu pária no mundo, impedida de viajar ou de se relacionar propriamen­te com o exterior.

Putin contra-atacou com eficácia razoável, defendendo o rublo com manobras baseadas em seu maior trunfo: petróleo e gás. Ao obrigar seus clientes a pagar em moeda local, conseguiu retomar a cotação e ainda não viu uma catástrofe inflacioná­ria, apesar dos sinais evidentes do problema.

A demora de meses para a Europa ensaiar um embargo ao petróleo, mas não ao gás, russo, diz muito. Os proverbiai­s € 1 bilhão diários pagos a Putin pelo continente irão diminuir, mas detalhes burocrátic­os podem trazer surpresas.

O Kremlin conta, afinal, com o que a ministra das Relações Exteriores alemã, Annalena Baerbock, chamou de “fadiga da guerra” entre os ocidentais.

Para combater as evidências de cansaço, os Estados Unidos, principal ator no time do s que querem ver Putin humilhado, acelerou em etapas a qualidade do fornecimen­to de armas a Kiev. Passada a necessidad­e inicial por armas leves contra colunas blindadas, chegou a vez de obuseiros e sistemas mais pesados.

Há pegadinhas. A propalada aprovação do envio de lançadores de mísseis de artilharia, que colocou a Rússia em alerta e fez subir a tensão já grande entre as potências nucleares, trata por ora de meras quatro unidades que demorarão talvez cinco semanas para entrarem no jogo.

Mas ela diz mais sobre o substrato geopolític­o central da guerra, com o perdão às vítimas em solo: uma espécie de enfrentame­nto terminal proposto por Washington a Moscou. Por toda conversa de evitar a Terceira Guerra Mundial, Joe Biden tem agido de forma tão agressiva quanto Putin, com a óbvia vantagem de ele não ter começado essa briga.

Na visão russa, contudo, o Ocidente é culpado: expandiu a Otan (aliança militar liderada pelos EUA) a leste e ameaçou integrar a Ucrânia a ela, uma das causas da guerra.

Isso acabou superestim­ado, dado que objetivame­nte Kiev teria dificuldad­es em entrar no clube. Além disso, Putin perdeu ao ver Finlândia e Suécia pedirem para aderir, enterrando sua neutralida­de.

Biden e Putin, contudo, se testam todas as semanas usando o solo ucraniano de palco. As reiteradas ameaças nucleares do russo são apenas isso em princípio, mas é inegável e desconfort­ável que o mundo tenha se tornado um lugar em que tais bravatas podem ser feitas por quem tem o maior acervo de bombas atômicas no mercado.

Há, por fim, o quadro geral marcado pela posição da China, que mantém seu apoio ao aliado Putin e até juntou-se a ele para sinalizar sua insatisfaç­ão com Biden ao fazer voar bombardeir­os estratégic­os em patrulha conjunta no mar do Japão enquanto o americano se encontrava com aliados do Pacífico para admoestar Pequim a não tratar Taiwan como a Ucrânia.

Essa intersecçã­o coloca o conflito europeu, com americanos e russos vendo quem pisca primeiro, dentro do escopo da Guerra Fria 2.0 entre EUA e China, rivais estratégic­os do século 21. Putin declarou aliança com Xi Jinping 20 dias antes de invadir o vizinho, e a ambiguidad­e chinesa ao pedir a paz se mistura com os renovados sinais a Moscou. É um jogo de espera.

Já a paz poderá ou não vir em alguma forma negociada sobre o acordo que russos e ucranianos desenharam em Istambul, no dia 29 de março.

Ele previa um sistema de garantias mútuas que incluía a Rússia, algo parecido com o que os europeus fizeram no século 19 com a Bélgica —só para ver forças alemãs rompendo a fronteira em 1914.

Da mesma forma, Putin pode ou não se dar por satisfeito no Donbass. Kiev pode insistir na briga, animada pelos EUA, apesar dos europeus. Tudo pode escalar, e a recessão global parece dada para 2023 devido à confusão.

A realidade de 23 de fevereiro é passado, enquanto os incertos milhares de civis e militares mortos e 4,7 milhões de refugiados dão testemunho da conta em sofrimento.

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Presidênci­a da Ucrânia - 18.mar.22/afp
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Sergei Guneev - 16.mai.22/reuters

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