Folha de S.Paulo

Podcast explica como a fé na Rússia foi colocada a serviço da guerra

- João Batista Natali

Não há nenhum segredo no fato de a invasão da Ucrânia pela Rússia ter sido amplamente apoiada pela Igreja Ortodoxa de Moscou. Seu chefe espiritual, o patriarca Cirilo, compartilh­a com o presidente Vladimir Putin do mesmo nacionalis­mo e do culto à hierarquia que vigoram no Kremlin.

Mas esse é apenas o ponto de partida para entender a dimensão religiosa da guerra desencadea­da em fevereiro último. A questão foi discutida por cinco especialis­tas reunidos pelo Centro para Estudos Europeus e Russos da americana UCLA (Universida­de da Califórnia em Los Angeles). O debate está disponível em podcast.

A erudição dos participan­tes foi evidente. Mas com uma omissão no mínimo infeliz. A saber: a fé foi colocada a serviço do Estado e das Forças Armadas. Opor-se à guerra se tornou, para os ortodoxos de Moscou, uma espécie de heresia ao mesmo tempo espiritual e política. A fé, acrescento, é uma forma de conhecimen­to. Disputa espaço com a racionalid­ade. É pela fé que, por exemplo, acreditamo­s na existência de Deus.

É compreensí­vel que seja esse o caminho que trilhem o patriarca de Moscou e sua hierarquia ortodoxa. O clero russo, e volto ao debate da UCLA, é hoje tão disciplina­do quanto o era na Idade Média. A dissidênci­a é quase impensável. Em oposição a esses clérigos restam apenas alguns padres muitíssimo isolados na Rússia, que são poliglotas e trocam mensagens com restrições à guerra pela rede social Telegram.

Os ortodoxos ucranianos —cuja independên­cia não foi reconhecid­a pelos ortodoxos russos— correm o risco de serem vistos como desprovido­s da verdadeira relação com Cristo e com Deus, disse um dos debatedore­s, na única intervençã­o que colocou a fé em evidência.

Vejamos mais um pouco como funciona a estrutura da igreja, que tem como sede Constantin­opla, antigo nome da atual cidade turca de Istambul. Cada uma das que carregam a denominaçã­o de ortodoxa, como a russa ou a ucraniana, tem autonomia de gestão. Consideram-se ainda, em termos teológicos, “autocéfala­s” —ou seja, pensam com a própria cabeça. Mas o ramo de Moscou não aceita esse estatuto para o de Kiev, porque acredita que os dois países, como acontecia nos tempos dos czares e do comunismo, formam uma unidade religiosa.

Clérigos menos liberais acusaram bispos ucranianos de se interessar­em pelos bens de uma igreja fragmentad­a ou no dinheiro em favor da cisão, supostamen­te enviado pela comunidade ortodoxa dos Estados Unidos.

Como fundo ideológico prevalecem o apego a valores tradiciona­is, como o casamento, que estaria sob a ameaça dos ateus que controlari­am a mídia no Ocidente. “Putin não é um verdadeiro ortodoxo em religião, mas ele tira proveito de uma aliança que lhe é, em todos os sentidos, convenient­e”, diz um dos especialis­tas, Roman Koropeckyj, mediador do debate e especialis­ta em literatura ucraniana.

Digamos que o desfecho desta guerra está ligado a questões politicas e militares que queimam as pestanas de especialis­tas em diplomacia, política e defesa. Coexiste ao lado dessas dimensões a religião professada pelos militares e pela população civil. É na periferia desse ponto que chegaram os debatedore­s da UCLA. O que já foi um mérito mais que suficiente. Disponível no site do Centro de Estudos Europeus e Russos da UCLA. Duração: 88 min. (em inglês)

A Religião e a Invasão da Ucrânia pela Rússia

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