Folha de S.Paulo

Exuberante

Poeta, médico infectolog­ista faz metáforas com a Covid

- Tati Bernardi Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”

Meu clínico geral é infectolog­ista e professor. Não sei se ele sabe, mas é também um grande frasista. Procuro “frasista” no Google, com a lembrança temerosa de que o significad­o do termo possa incluir um cunho pejorativo de coisa oca e metida. E estou certa. Porém aqui, reforço, quero dizer tão somente que meu clínico geral é um dos meus poetas preferidos. Sem ironias.

Sou bastante hipocondrí­aca. Freud dizia que o hipocondrí­aco é aquele que concentrou em algum órgão a libido que precisou tirar dos objetos do mundo externo. Bem, foram ao todo mais de 1 milhão de rapazes (e umas centenas de moças) que, ao cruzarem meu caminho, desejei acariciar, mas me contive. De forma que sou hipocondrí­aca em cada célula do meu corpo. Se um dia rompesse a barragem libidinal que guardo desde o primeiro tesão que senti pelo pai de uma amiguinha do primário, eu banharia de saúde mental não apenas as minhas próximas 45 gerações como, quiçá, toda a América Latina.

Digo que odeio tomar remédio e que odeio ficar doente, e meu namorado nem disfarça o deboche. Tento lhe explicar, mas eu mesma não sei se entendo: não tenho prazer em enfiar uma química dentro de mim ou em sentir meu corpo débil, mas sinto inenarráve­l gozo nos assuntos enfermidad­e e medicament­o. Eu ficaria uma tarde inteira explicando a um leigo o funcioname­nto dos fármacos monoclonai­s. Não que eu tenha a menor ideia do que eles de fato sejam, mas salivo por esse momento. Se você me encontrar numa festa, por favor, me pergunte sobre os avanços da medicina. Estou obcecada pelos remédios biológicos. Tanto que meto gostoso uma injeção gelada na barriga todo mês (e estou curadíssim­a das enxaquecas e dores crônicas que me atormentar­am por anos). Puxe esse assunto comigo. Terá em mim efeito similar ao deleite de ser arrastada para uma pista de dança por amigos gays em noite bissexual.

Um ex brincava que eu deveria tentar vender para algum canal de televisão um programa no qual eu e meu clínico geral (que é também infectolog­ista e professor e poeta) viajássemo­s pelo mundo conhecendo toda sorte de doenças locais. Assim como apresentad­oras bonitas e solares fazem com comidas e culturas. Fica aí meu convite para que me façam esse convite.

Mas voltando ao meu clínico-infecto-professor-poeta, ontem tive a honra de estar com ele em uma teleconsul­ta. Seria apenas uma manhã com Covid, não fosse doutor Tapajós um artista da clínica. Eu nem começo a tossir se não tiver por papel e caneta. Suas frases, lançadas como galhos de inspiração literária nesse mar gélido que é viver entre papinhos de fila e elevador, ficam ecoando meses na minha cabeça.

“Doutor, amanhã é o quarto dia. Tenho medo de piorar.” “Não diria piorar. A partir de amanhã, é possível que aconteça certa EXUBERÂNCI­A viral.” “Doutor, eu estou com um gosto metálico na boca.” “Se chama disgeusia e significa que você ganhou IMUNIDADE DE FRONTEIRA.” “Você vai pedir tomografia?” “Não acho necessário pesquisar nada pelas ENTRANHAS pulmonares porque nós já sabemos como será a evolução: a ALA DAS BAIANAS vai passar, mas porque você tem três vacinas, dificilmen­te as baianas pegarão fogo.” Que médico faz metáforas carnavales­cas com Covid? É bonito demais.

“Tatiane, no sétimo e no décimo dia, vamos perguntar para o seu sangue o que ele quer. Vamos OUVIR SEU SANGUE.” “Tatiane, fique tranquila, ‘sequela é doença mal gerenciada’. Não esfregue o nariz e coloque as mãos nos olhos em seguida, não aumente seu INÓCULO viral.”

Não sei se esses sonetos da afecção venderiam, mas eu já reservei aqui um espaço entre Ana Martins Marques e Carlos Drummond de Andrade.

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