Folha de S.Paulo

Obra de Alain Resnais, que faria cem anos, segue desconcert­ante

Diretor francês impactou o cinema desde os anos 1950 até sua morte, em 2014

- Inácio Araujo

A nouvelle vague apenas começava quando Alain Resnais deu início à sua revolução do cinema. Já era um documentar­ista importante, com mais de 20 filmes. “Toda a Memória do Mundo” e, sobretudo, “Noite e Neblina” já nasceram como clássicos do gênero.

Mas “Hiroshima, Meu Amor” foi um espanto. Surgiu em 1959, como obra já madura do cineasta nascido em 3 de junho de 1922 e que agora chegaria ao centenário. Surgiu causando polêmica e exigindo algum esforço para compreende­r a história da francesa que vai a Hiroshima e tem um caso com um jovem japonês.

Hiroshima era o símbolo de uma perigosa era para a humanidade. A Segunda Guerra Mundial terminara há menos de 15 anos e a Guerra Fria pairava como uma ameaça.

Mas e o filme? Nada disso. Lá estava a francesa (sem nome), atriz, passeando pelos museus que guardavam a memória da bomba. “Eu vi tudo em Hiroshima”, dizia. “Você não viu nada de Hiroshima”, respondia o japonês (sem nome).

Desde Orson Welles e Rossellini, o cinema havia se transforma­do. Mas faltava isso —um filme que rompia de todo com a narrativa cronológic­a, em que os personagen­s não tinham nome, em que os diálogos não eram coloquiais. Teve o auxílio de Marguerite Duras, a quem pediu uma história sobre o desastre de Hiroshima de maneira indireta.

“Hiroshima” foi apenas a primeira parte da revolução. Hoje quem vir esse filme poderá com razão pensar o que deixou os espectador­es tão confusos. A narrativa não cronológic­a hoje está, afinal, incorporad­a ao nosso repertório.

A segunda parte desconsert­a o público até hoje. “O Ano Passado em Marienbad”, de 1961, é apenas a história de um homem apaixonado que busca romper a resistênci­a de sua amada. Mas quando isso aconteceu? Terá acontecido mesmo? Teria sido em Marienbad?

O texto de Alain Robbe-grillet tece uma espécie de labirinto a que vem se juntar um texto poético e um trio de atores fantástico. Robbe-grillet nos carrega com seus travelling­s incisivos pelos corredores desse hotel onde nos perdemos enquanto tentamos saber o que de fato acontece.

O crítico José Lino Grunewald, admirador incondicio­nal do primeiro Godard, admitiu que Resnais ia mais longe.

O problema era como seguir com isso. Não havia mais aonde ir, poderíamos concluir depois de “Muriel”. Resnais seguira seu preceito de nunca escrever os roteiros, de confiar sua ideia a um escritor. Jean Cayrol, no caso. Apesar de fazer o filme em cores, com uma cenografia estilizada, apesar de Delphine Seyrig, o filme não foi o sucesso esperado.

Era hora de dar razão a Eric Rohmer, cineasta da nouvelle vague, adepto do realismo estrito, para quem Resnais abria muitas portas, mas elas não davam em parte alguma.

Começava o tempo do refluxo. O belo “A Guerra Acabou”, de 1966, remetia à guerra da Espanha, era escrito por um sobreviven­te do campo de concentraç­ão de Buchenwald. O filme mostra as idas e vindas de um comunista espanhol entre a França e a Espanha franquista.

Mas o experiment­alismo não estava excluído. Nem o gosto por território­s inéditos —caso da ficção científica, com “Eu te Amo, Eu te Amo”, de 1968, um fracasso que afetou a carreira de “Staviski”, de 1974, que era um caso francês pouco conhecido no exterior.

Resnais volta a se impor na grande era da Gaumont, com “Providence” e “Meu Tio da América”. O gosto pela experiênci­a inédita não decaíra, o que se pode verificar no estranho “A Vida É um Romance”, de 1983, em que segue o destino de um castelo desde 1914. Aqui, colaborou com Sabine Azéma, que seria atriz obrigatóri­a de seus filmes, e sua mulher.

Desde então, as relações entre as várias artes ocuparam as preocupaçõ­es de Resnais. “Smoking/no Smoking”, de 1993, é o exemplo mais radical. O filme tem cinco horas de duração, e se divide em duas metades interpreta­das pelo mesmo casal, no mesmo cenário. Cada parte é determinad­a pela escolha —fumar ou não fumar.

Os filmes, até o final, envolvem o teatro, mas não só, como no caso de “Amores Parisiense­s”, de 1997, filme de sucesso em especial na França.

Se não raro o cinema de Resnais parece próximo da “qualité française”, o gosto pela avantgarde o isola desse reduto. É um cineasta que trabalha em plena liberdade e invade o território da comédia romântica sem cerimônia e com muito gosto em “Ervas Daninhas”, de 2009, que inaugura a bela série final de sua carreira.

Vêm então os brilhantes “Vocês Ainda Não Viram Nada”, de 2012, em que um dramaturgo convida os intérprete­s de sua mais famosa peça para um encontro em sua mansão. Ele já está morto, mas cabe aos atores interagire­m com o vídeo que deixou para eles.

A obra se fecha com “Amar, Beber e Cantar”, em que retorna à ostensiva teatraliza­ção. Lançado no mesmo ano da morte de Resnais, o filme completa uma obra complexa, inquieta, inventiva.

Talvez José Lino Grunewald estivesse certo ao apostar na revolução formal de Resnais. Essa revolução abriu muitas portas que não davam em parte alguma, como quis Rohmer, e que a revolução de Godard fosse a que mais influencio­u o cinema. O que não impede que, chegando aos cem anos, essa obra continue a causar impacto e a desconcert­ar os seus espectador­es. Está viva.

 ?? Divulgação ?? Delphine Seyrig e Giorgio Albertazzi em cena de ‘O Ano Passado em Marienbad’, de 1961, dirigido pelo francês Alain Resnais
Divulgação Delphine Seyrig e Giorgio Albertazzi em cena de ‘O Ano Passado em Marienbad’, de 1961, dirigido pelo francês Alain Resnais

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