Folha de S.Paulo

Ode às mulheres com pés rachados

A literatura escrita por mulheres negras arrancou vendas dos meus olhos

- | seg. Luiz Felipe Pondé | ter. João Pereira Coutinho | qua. Marcelo Coelho | qui. Fernanda Torres, Drauzio Varella | sex. Djamila Ribeiro | sáb. Mario Sergio Conti Djamila Ribeiro Mestre em filosofia política pela Unifesp e coordenado­ra da coleção de li

Dona Erani foi uma mulher com os pés rachados e os olhos tristes. E foram raras as vezes em que alguém, em vez de olhá-la com desprezo ou desdém, perguntou qual era a história por trás daqueles olhos castanho-escuros. Certa vez, uma vizinha comentou: “Que pé horrível, Erani, todo rachado!”, numa tentativa de diminuí-la ou de simplesmen­te gritar uma opinião não requisitad­a que fez minha mãe comprar todos os tipos de cremes e lixas. A vizinha poderia ter aceitado a feiura deles, ou até ter visto beleza, se tivesse questionad­o por onde aqueles pés haviam andado.

Eu demorei algum tempo para descondici­onar meu olhar e enxergar beleza nos pés rachado de minha mãe. A gente é ensinada a se distanciar daquilo que é visto como feio e só depois vai perceber que isso só existe por causas daquelas caminhadas em cacos de vidro e asfalto quente. A literatura escrita por mulheres negras arrancou vendas dos meus olhos e me fez entender a complexida­de das humanidade­s dessas mulheres.

Pecola Breedlove, personagem principal do livro “O Olho Mais Azul”, de Toni Morrison, escancara as portas da indiferenç­a e nos leva a conhecer a realidade de meninas que foram tratadas como descartáve­is. É preciso um certo empenho para confrontar a cegueira imposta e perceber que por trás das violências existem mulheres que anseiam por vida.

Futhi Ntshingila no seu romance “Sem Gentileza” nos mostra como Zola e Mvelo, mãe e filha, mesmo em meio ao apartheid sul-africano, encontram saídas na magia e no desejo incansável por sobreviver. Não há a fixação no lugar de objeto, como gostam as pessoas que se colocam no lugar de salvadoras, não reconhecen­do que só existe salvador porque se alimentam as desigualda­des.

Carolina Maria de Jesus refutou esse lugar imposto às mulheres pobres como objetos: “Escrevo a miséria e a vida infausta dos favelados. Eu era revoltada, não acreditava em ninguém. Odiava os políticos e os patrões, porque o meu sonho era escrever e o pobre não pode ter ideal nobre. Eu sabia que ia angariar inimigos, porque ninguém está habituado a esse tipo de literatura. Seja o que Deus quiser. Eu escrevi a realidade”.

Essas escritoras, e eu poderia citar dezenas delas, nos convocam a olhar o mundo por outros olhos. Exige um certo empenho, um refinament­o da alma. É mais fácil olhá-las pela perspectiv­a do salvador que alimenta egos e supõe uma superiorid­ade sobre elas.

É mais confortáve­l nem sequer enxergá-las para não ter de lidar com quebras de verdades e com a complexida­de própria do humano.

“Vem pra sua vó, querida. Senta no colo que nem antigament­e. Sua vó num vai fazer mal a um fio de cabelo da sua cabeça. E também num quer que ninguém mais faz, se puder impedir. Querida, o branco manda em tudo desde que eu me entendo por gente. Por isso o branco larga a carga e manda o preto pegar. Ele pega porque tem de pegar, mas num carrega. Dá pras mulher dele. As preta é as mula do mundo até onde eu vejo. Eu venho rezando pra num ser assim com ocê. Senhor! Senhor! Senhor!”, diz a avó de Janie, personagem de “Seus Olhos Viam Deus”, de Zora Neale Hurston. A avó de Janie sabia como as coisas funcionava­m, mas lutava para que a neta pudesse ter um melhor destino, de esperançar um novo mundo apesar das tragédias construída­s por aqueles que têm poder. Esse sonho de liberdade, por si só, é um ato de resistênci­a que cria signos poderosos para aquelas que cresceram se sentindo deslocadas do mundo.

Uma literatura que dá nome e sobrenome às “tias do café”. Já Conceição Evaristo, no romance “Ponciá Vicêncio”, ao mostrar o vazio inexorável da personagem, nos faz extrapolar os limites do descaso. “Ponciá Vicêncio não queria mais nada com a vida que lhe era apresentad­a. Ficava olhando sempre um outro lugar de outras vivências.” Não seria isso também a afirmação metafísica da liberdade, ânsia por não se acomodar com o imposto?

Mesmo Pecola Breedlove, na forma triste que encontrou para se sentir bonita ao desejar olhos azuis, a partir desse desejo triste nos fez enxergar a realidade enfrentada por meninas negras retintas nos Estados Unidos. Não seria isso uma forma de escancarar as consequênc­ias de uma sociedade que elegeu como padrão de beleza “Shirleys Temples”?

Há a necessidad­e visceral de encontrar frestas de esperança, de ser sujeito de estórias que se tornam histórias de muitas nós. Ao humanizar essas mulheres, essas autoras incomodam verdades como quem sai de um quarto escuro diretament­e para um dia de sol. Os olhos doem, lacrimejam, mas, após algum tempo, o calor na pele é tão gostoso que não se cogita voltar para a escuridão.

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Linoca Souza

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