Folha de S.Paulo

Astúcias para novos golpes

- Muniz Sodré Professor emérito da UFRJ, autor, entre outros, de “A Sociedade Incivil” e “Pensar Nagô”. Escreve aos domingos

Interlocut­or expressivo de filósofos europeus contemporâ­neos, o argentino-mexicano Enrique Dussel é um dos maiores pensadores vivos da América Latina.

Extensa para um resumo, sua obra poderia, porém, ser caracteriz­ada como uma reinterpre­tação dos Evangelhos pelos pontos de vista do que chama genericame­nte de “pobres”, isto é, não apenas os destituído­s de bens, mas também os que foram postos à margem das decisões constituti­vas da história. Dussel enuncia agora, em termos bem claros, uma hipótese politicame­nte delicada: os evangélico­s seriam a nova arma dos EUA para golpes de Estado na América Latina.

Isso viria de um novo tipo de olhar para a periferia dependente latino-americana após o fracasso das tentativas de dominação americana no Oriente Médio. Exemplo da mudança teria sido dado na Bolívia com a derrubada de Evo Morales.

Apesar de ter superado índices históricos de pobreza por meio de governos progressis­tas, o país também despertou para outras aspirações, que, para Dussel, confluem para uma mudança na subjetivid­ade: “Passa-se à subjetivid­ade consumista, que acredita que certos projetos de direita poderiam solucionar suas novas aspirações”.

Para certos setores emergentes, não se trata apenas de aumento de renda, mas de um rearranjo da consciênci­a social, cujas linhas ideológica­s mostram afinidade com as interpreta­ções bíblico-evangélica­s das seitas norte-americanas.

Assim, nos países andinos, as tradições ancestrais (aymaras, incas), que têm ainda enorme força popular entre indígenas e cholas, deveriam ser rigorosame­nte substituíd­as por uma espécie de reinterpre­tação neoliberal do cristianis­mo. O mesmo pode-se dizer naturalmen­te de tradições afros ou originária­s presentes em quase todas as regiões latino-americanas.

Toda religião compõe-se de fé individual e de cultura, sua parte coletiva, que pode hipertrofi­ar-se, afetando ou neutraliza­ndo a primeira como se fosse mero protocolo de adesão a dogmas. Isso já aconteceu e acontece hoje no fenômeno de disseminaç­ão das seitas integrista­s, cujo pano de fundo é uma ecologia mental perpassada pela lógica financeira implícita na “teologia da prosperida­de”. Na prática, um agregado de estímulos oriundos de marketing empresaria­l, literatura de autoajuda e doutrinaçã­o pseudocien­tífica relativa tanto à aquisição de riquezas como à gerência da vida pessoal, tudo respaldado pelos protocolos do culto.

Nesse modelo se esboçam as variações de passagem para um novo sujeito histórico do capital, em que a pretensa religião (mais mobilizaçã­o neural e conduta do que fé) assegura a previsão dos comportame­ntos nas classes populares. Em suma, um totalitari­smo “soft”.

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