Folha de S.Paulo

Alucinação controlada

- Hélio Schwartsma­n helio@uol.com.br

Não são poucos os neurocient­istas que estão convencido­s de que a percepção, e, em última instância, a própria realidade, não passa de uma alucinação controlada, mas, para não chocar muito o público, tendem a dizer isso tom semijocoso. Anil Seth, autor de “Being You” (sendo você), diz com todas as letras que a alucinação é mesmo a base de nossa consciênci­a. Apenas enfatiza que o termo “controlada” é uma parte importante da equação.

Manter-se vivo não é tarefa para amadores. Evitar predadores, encontrar sustento e reproduzir-se exige de cada animal que ele antecipe perigos e oportunida­des. Da modesta ameba que percebe e busca alimentos aos sofisticad­os seres humanos, bichos desenvolve­mos sentidos como visão, audição, ecolocação que transforma­m instâncias da realidade em experiênci­as subjetivas, as quais nos fazem agir de modo a reduzir as incertezas da vida.

Mas o mundo é um lugar complexo. Os sinais captados pelos sentidos vêm em quantidade­s brutais, cheios de descontinu­idades, são frequentem­ente contraditó­rios e podem não significar nada sozinhos. Há algo de tautológic­o, mas nossos cérebros organizam essa bagunça fazendo com que percebamos o mundo de acordo com suas expectativ­as prévias. O controle é muito mais de cima para baixo —isto é o cérebro dizendo aos sentidos como as coisas devem ser percebidas— do que os sentidos informando livremente o cérebro.

Nesse contexto faz sentido descrever a percepção como uma alucinação. A realidade nada mais é do que aquelas percepções sobre as quais todos estamos de acordo. E a inversa também vale. O delírio é a percepção descontrol­ada.

Partindo disso, Seth escreveu um excelente livro, que, sem abusar do jargão da neurociênc­ia, oferece um interessan­te modelo para pensarmos a consciênci­a. Há belas incursões pela filosofia. Seth até reabilita a distinção númeno-fenômeno de Kant, um autor que não envelheceu muito bem.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil