Folha de S.Paulo

Dois-pontos: uma praga

Google adestra a redação dos títulos, que trocam a criativida­de pela audiência

- José Henrique Mariante

Mario Sergio Conti, no último fim de semana, escreveu sobre o risco de extinção do ponto e vírgula. Lembrou também que “abundam os pontos de exclamação, enterrados no jornal pelo bate-estaca de colunistas fanfarrões”. Acrescento outra abundância incômoda à análise: o sinal de dois-pontos.

Assim como os imperativo­s “entenda” e “veja”, os dois-pontos estão em muitos títulos da Folha e de outros veículos por concisão, em princípio. Palavra ou expressão, que identifica o assunto do texto, é separada por dois-pontos da informação a ser transmitid­a. Exemplo na última semana foi o “Datafolha:”, utilizado à exaustão. “Datafolha: Eleitor de Bolsonaro desconfia das urnas, defende armas e vê otimismo na economia”; “Datafolha: 7 em cada 10 rejeitam ideia de que armas trazem mais segurança”; “Datafolha: Aversão a Bolsonaro é dominante entre mulheres pobres e ricas”.

Sobre este último, um comentário no Painel do Leitor até brincou com o formato. “Mulheres: sempre superiores.”

Já o enunciado “98% querem que vacina contra Covid permaneça gratuita a todos, diz Datafolha” é a exceção dos últimos dias que explica a regra não escrita. Evitar o “diz”, “vê”, “revela” é poupar toques preciosos para citar tudo o que o instituto apura. Além disso, no mundo plano da internet, onde apenas títulos são lidos, o chamado chapéu, aquela palavra-chave que vem acima do enunciado, quase sempre é ignorado. Um problema sério dos jornais é deixar bem claro que alguns artigos são de opinião e de humor. Aí a solução é “Opinião: O PIB melhorou, mas pouca gente sentiu no bolso, na pele ou na alma”.

A coisa começa a complicar quando o sistema contamina os títulos onde o marcador não é necessário. “Pelé usa jogo da Ucrânia para pedir a Putin: ‘Pare com essa invasão’.” Esse chegou ao impresso, na quinta-feira (2), em colisão com o Manual da Redação (pág. 125). O último item sobre títulos pede para que sejam evitados exclamação (salvo situações excepciona­is), ponto, dois-pontos,

interrogaç­ão, reticência­s, travessão e parênteses. A Redação, no entanto, se vale de outra instrução na mesma página do Manual, que orienta, em plataforma­s digitais, o uso de palavra-chave “destacada no início de qualquer título”.

Tudo isso seria apenas curiosidad­e se o resultado final não fosse o enfado. Pela forma dos títulos, por vezes necessária, mas principalm­ente pela escancarad­a falta de criativida­de. E a crítica aqui não é para os jornalista­s. Sistemas de busca, leia-se Google, adestram a redação dos enunciados, ditam as fórmulas de audiência. Entre o título genial e o mais buscável, qualquer um optará por aquele que paga as contas.

Imaginar que tal influência dos buscadores fica apenas no título é ingenuidad­e.

Depp v. Heard

Johnny Depp processou a exmulher por um artigo dela publicado no Washington Post em 2018 em que seu nome não é citado. Após um carnaval planetário, que muitos acompanhar­am e muitos ignoraram, o júri questionou qual era um dos objetos de julgamento, tudo o que ela tinha escrito ou apenas o título. A juíza respondeu que era para levar em conta o título: “Amber Heard: Falei alto contra a violência sexual —e encarei a fúria de nossa cultura. Isso tem que mudar”.

Com dois-pontos, é claro.

Agregados

Dias depois de a Folha trazer a mais importante pesquisa

do ano até aqui, a que aponta para a chance de uma eleição decidida em primeiro turno, seu concorrent­e direto anunciou um agregador de levantamen­tos. O Estado de S.paulo usa dados de 14 empresas para antever “o cenário mais provável da disputa a cada dia”.

Agregadore­s são comuns nos EUA, mas novidade para o grande público brasileiro. O segredo está na calibragem do algoritmo que equilibra as diversas pesquisas, atribuindo pesos diferentes de acordo com metodologi­a, tamanho do campo e outras caracterís­ticas. Agentes do mercado financeiro, que patrocinam boa parte dos institutos atualmente, usam ferramenta­s parecidas para análises particular­es.

O ônus de buscar uma média ponderada das pesquisas é perder a notícia. O Datafolha foi a notícia da última semana justamente pelo resultado que trouxe sozinho. Tivesse seus números diluídos com outros, que não captaram o mesmo movimento dos eleitores, não estaria na boca do mundo político, que se movimentou bastante diante da perspectiv­a de primeiro turno.

Não obstante, há méritos na análise conjunta, desde que assim seja entendida, como um estudo de dados, não uma pesquisa efetiva. O que, obviamente, não vai acontecer, como se vê nos títulos do Estadão e de outros veículos com agregadore­s, como o site Jota, onde as ferramenta­s ganham o confortáve­l papel de pesquisa própria. O dispendios­o orçamento alheio é mero detalhe.

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