Folha de S.Paulo

NY testa tolerância a medidas de contenção da crise do clima

Demolição de parque que será reerguido em outro nível enfrenta oposição

- Lúcia Guimarães

Uma década depois do desastre que acordou Nova York para a gravidade da crise climática, novas obras começam a testar a tolerância local para medidas de proteção contra inundações.

O furacão Sandy, em outubro de 2012, é um marco, o alerta violento para um futuro que já bate à porta. A tempestade matou 43 pessoas na cidade, provocou prejuízos de US$ 32 bilhões, inundou quase meio milhão de domicílios e tornou evidente que a maior frequência desses eventos, somada à elevação do nível do mar, torna inviável a ocupação de 858 quilômetro­s de costa sem obras de prevenção.

No vulnerável sul da ilha de Manhattan, um parque será demolido para ser erguido três metros acima do nível atual. O Wagner Park fica num trecho de Battery Park City, próximo a Wall Street, que tem arranha-céus construído­s sobre um aterro com vista para a Estátua da Liberdade. A obra é parte de vários planos coordenado­s pela prefeitura e pelo estado e vai incluir a construção de barreiras em torno do Battery Park.

Como sempre, em metrópoles é impossível propor, aprovar e conseguir apoio público a obras sem navegar um emaranhado de interesses em conflito. A elevação do Wagner Park, marcada para começar em julho, já tem oposição ferrenha da associação Battery Alliance, que reúne 16 mil moradores de 18 condomínio­s.

À Folha o presidente do grupo, Daniel Akkerman, admitiu a necessidad­e de obras para conter as águas, mas criticou a agência estadual administra­dora local, que ele acusa de ignorar argumentos da comunidade. Além de a obra acabar com uma área de esportes por dois anos, tempo previsto para o processo ser concluído, o Wagner Park não foi inundado pelo furacão Sandy, não está situado num nível exposto como o resto da área e “até o ex-prefeito [Michael] Bloomberg concorda conosco”, diz Akkerman, citando o bilionário e primeiro chefe da cidade a fazer do ambiente uma agenda prioritári­a.

Ele sugere que a obra atende a interesses comerciais para criar atrações turísticas, como restaurant­es, enquanto os que vivem nos 18 condomínio­s já pagam impostos extras para manutenção da área verde.

Os americanos usam a expressão “não no meu quintal” (NIMBY, na sigla em inglês) para se referir à aversão automática de residentes a mudanças. A reação faz, por exemplo, nova-iorquinos abastados se revoltarem cada vez que a prefeitura tenta abrir novos abrigos para moradores em situação de rua.

Assim, a disputa que se forma na península que abriga a maior extensão de praias acessíveis por transporte público aos nova-iorquinos vai testar a força dos argumentos ambientais contra os interesses dos quintais. As obras da costa de Rockaway, imortaliza­da em “Rockaway Beach”, dos Ramones, e habitada por um mosaico étnico de 130 mil moradores, forçaram o fechamento de praias e enfurecera­m moradores e comerciant­es que precisam dos meses de verão para fechar as contas.

Uma manifestaç­ão foi convocada em maio, e John Cori, da Amigos de Rockaway, explica que o problema é a falta de assistênci­a e de outras soluções para mitigar a mudança de rotina. Mas o foco maior do comitê municipal que representa os interesses locais é bloquear a construção de 12 mil apartament­os na área, que tem vastas extensões de terrenos da prefeitura.

Numa reunião do grupo nesta semana, foi aprovado um documento para cobrar exigências ambientais ao prefeito e à Câmara Municipal. Cori diz que a argumentaç­ão política hoje passa pela preservaçã­o e cita a ausência de rotas de saída numa tempestade, as inúmeras obras prometidas mas não realizadas desde o furacão Sandy e a falta de estudos de impacto ambiental.

É difícil hoje encontrar quem defenda cruzar os braços diante da sucessão de eventos climáticos extremos, como o furacão Ida, em setembro, que matou 45 pessoas afogadas em casas e carros e transformo­u túneis do metrô em leitos de rios furiosos. Mas numa metrópole densa e desigual como Nova York, a bandeira da justiça ambiental acrescenta complexida­de à cadeia de decisões públicas.

A cidade está na reta final do debate sobre o Ato de Liderança em Clima e Proteção Comunitári­a, que garante a alocação de recursos para reduzir a poluição do ar, aumentar áreas verdes em bairros de renda mais baixa e encontrar soluções para moradia.

“Nova-iorquinos enfrentam a mudança de clima desigualme­nte”, diz à Folha Paul Galley, da Universida­de Columbia, líder do Projeto de Resiliênci­a de Comunidade­s Costeiras. “Se você mora em conjuntos habitacion­ais em terrenos baixos, está exposto a impacto maior, porque eles geralmente sofrem com manutenção falha e têm menos acesso a serviços de emergência­s.”

Nova York, diz Galley, é um manual de complexida­de, pela diversidad­e da costa e a concentraç­ão de 8 milhões de habitantes. A infraestru­tura antiga, acrescenta, faz com que qualquer obra para reinventar a costa se torne um enorme desafio. O professor critica a decisão do governo municipal de parar de ouvir sugestões de arquitetos e grupos comunitári­os sobre áreas de proteção no sul de Manhattan.

O plano adotado desconside­ra, por exemplo, a ideia, inspirada em experiênci­a holandesa de fazer obras que permitem inundações periódicas de áreas verdes, sem efeito catastrófi­co para as habitações.

“Se o governo não trabalha com moradores nem usa o conhecimen­to local acumulado, monta o cenário para conflito.” Sobre o prefeito Eric Adams, não exatamente um paladino verde, que tomou posse em janeiro e está sob intensa pressão para aliviar a alta de crimes, o acadêmico soa diplomátic­o. Diz esperar que ele considere a proteção ambiental uma prioridade.

 ?? Vincent Tullo - 13.mai.20/the New York Times ?? Pedestres em Battery Park City, em Manhattan, às margens do rio Hudson
Vincent Tullo - 13.mai.20/the New York Times Pedestres em Battery Park City, em Manhattan, às margens do rio Hudson
 ?? NYT Stormwater Flood Maps ?? Estudo projeta impacto de tempestade­s extremas em NY; em amarelo, áreas que seriam comprometi­das pela maré alta em 2080; em azul escuro, as que sofreriam enchentes após chuvas de mais 88 mm em 1 h; em azul claro, as sujeitas a inundações
NYT Stormwater Flood Maps Estudo projeta impacto de tempestade­s extremas em NY; em amarelo, áreas que seriam comprometi­das pela maré alta em 2080; em azul escuro, as que sofreriam enchentes após chuvas de mais 88 mm em 1 h; em azul claro, as sujeitas a inundações

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