Folha de S.Paulo

Quanto vale o show do sertanejo

Entenda quanto cidades gastam em cultura e o peso dos eventos nos orçamentos

- Vinicius Torres Freire Jornalista, foi secretário de Redação da Folha. É mestre em administra­ção pública pela Universida­de Harvard (EUA) vinicius.torres@grupofolha.com.br

Um show sertanejo pode custar R$ 1,2 milhão para uma pequena prefeitura, soubemos por estes dias. Em alguns casos extremos, o gasto em uma noite de cantoria chega aquase R $100 por habitante da cidadezinh­a. Noutras, o cachê perca pitaémaism od esto, entre uns R $20 e R $60.

É muito dinheiro? Das cerca de4.900pre feituras que declararam gastos na“função cultura” em 2021, apenas 510 gastaramma­is der $1,2 milhão no ano passado. Em apenas 159 delas o gasto anual per capita em “cultura”

foi maior do que R$ 100. São dados pescados no Sistema de Informaçõe­s Contábeis e Fiscais do Setor Público Brasileiro.

O show parece caro, pois. Para fazer uma dessas comparaçõe­s aleatórias das estatístic­as da administra­ção pública, um aparelho de ultrassom “seminovo” custa uns R$ 300 mil. Um trator superfatur­ado, desses de emenda parlamenta­r do centrão, custa R$ 500 mil (mas vale R$ 200 mil).

Lembrei do ultrassom porque é uma queixa comum no interior e em periferias. O povo precisa de exame urgente e o ultrassom está quebrado ou inexiste. Mas tem show.

Esses exemplos acidentais, porém tristes de verdadeiro­s, alimentam conversas demagógica­s sobre despesa pública, tal como aquela tolice de dizer que, “se tirassem os privilégio­s dos políticos, o governo teria dinheiro” (não, não teria nem se o Congresso evaporasse, apesar de ser necessário tirar privilégio­s). Essa treta dos sertanejos ou da Rouanet tem sua demagogia. É preciso ter uma ideia mínima do conjunto do problema.

No ano passado, as prefeitura­s gastaram pelo menos R$ 4,2 bilhões na “função cultura”. Os governos dos estados, R$ 3,5 bilhões. O governo federal, R$ 1,25 bilhão. Nessas contas, não estão incluídos descontos de impostos. Pela Lei Rouanet, o incentivo foi de R$ 1,9 bilhão. Com esses números já é fácil perceber a burrice salafrária da campanha bolsonaris­ta.

É nas cidades, pois, que está o maior gasto na “função cultura”. Sabe-se lá que tipo de despesa é lançado nessa rubrica —os pesquisado­res da área apenas começam a estudar o assunto. Sabe-se que muito município gasta mal, até pelo mero fato de existir: não tem receita própria para bancar governo, burocracia, vereador, prebendas, menos ainda para prestar serviço público.

Segundo o Perfil dos Municípios Brasileiro­s do IBGE (o mais recente é de 2018), o caso mais comum de apoio financeiro municipal para a cultura era então o de “festas, celebraçõe­s e manifestaç­ões tradiciona­is e populares” (acontece em 85,5% das prefeitura­s). Apoio a “eventos” vinha em segundo lugar (75,7% das cidades). “Apresentaç­ão musical” em terceiro (62,8%). Em quarto, empatados com 30%, vinham “desfile de carnaval”, “montagem de peças teatrais” e “seminário, simpósio, encontro, congresso, palestra”.

Turismo ou outras atividades ditas “culturais”, festas ou patrimônio histórico, são importante­s para as finanças e empregos de muita cidade. O gasto na “função cultura” pode ser uma política econômica local. Se é eficiente, são outros quinhentos. Uma noite de verão de show caro não deve multiplica­r muito os negócios, a inteligênc­ia ou a educação.

Pegaram esse Gusttavo Lima para Judas, embora o cantor e seus amigos bolsonaris­tas do Sertanejis­tão devam saber por que estão apanhando. De modo explícito ou não, apoiaram a campanha de avacalhaçã­o da Rouanet e dos artistas que viveriam dessa mamata, que seriam uns comunistas, drogados, devassos e praticante­s da ideologia de gênero.

Mas Chicos e Franciscos, levem pau da esquerda ou da direita, recebem esses dinheiros. Se o gasto faz sentido, a gente não quer saber, da cantoria ao subsídio da gasolina.

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