Acolhimento familiar emperra com a falta de candidatos em São Paulo
Somente 63 famílias estão aptas para exercer a guarda provisória de uma criança ou adolescente
A sala da advogada Patrícia Rodrigues de Andrade, depois de anos, voltou a ser decorada por brinquedos quando ela e o marido, Paulo, decidiram entrar em um programa para acolher crianças em casa —desde fevereiro, o casal cuida de uma dupla de irmãos de 6 e 8 anos.
Acolhimento é o nome dado para a guarda temporária de crianças e adolescentes que estão afastados do convívio com os pais biológicos por algum motivo, como abandono ou negligência. É diferente, portanto, da adoção, que tem um caráter permanente.
O ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) prevê, desde 2009, que o acolhimento familiar é preferível ao encaminhamento para instituições.
Apesar disso, a modalidade é tímida no país. Dados do Tribunal de Justiça de São Paulo apontam que, mês passado, 59 crianças/adolescentes foram abrigados por famílias, e 858, encaminhados às instituições.
Na capital, a prefeitura deu início a um programa para a área em 2019, em convênio com organizações da sociedade civil que preparam e dão suporte à família acolhedora. O processo é criterioso e leva, em média, seis meses.
Uma das principais preocupações de quem atua no setor é observar se o candidato consegue distinguir a guarda provisória da adoção. Como regra, a pessoa não pode estar inserida no Cadastro Nacional da Adoção.
“O afastamento dos pais, ainda que diante de uma ação de negligência, é muito doloroso para a criança. Por isso, a família acolhedora, além de ser uma guardiã, tem que respeitar a história de vida daquela criança ou adolescente”, diz a psicóloga Márcia Machado Wightman Lopes, com quase 30 anos de experiência na Vara da Infância e Juventude.
Para especialistas, a transformação da criança depois do acolhimento é perceptível. “A criança acolhida tem um desenvolvimento psicomotor melhor em razão do afeto, a relação pessoal é muito importante”, diz a juíza Maria Silvia Gomes Sterman, que atuou na Vara da Infância e Juventude de Santo Amaro.
A falta de publicidade e de políticas públicas que estimulem a prática, além do desafio de acolher uma criança ou adolescente e, meses depois, ter que se separar, ameaçam a modalidade. Sara Maria Soares Luvisotto, coordenadora do serviço no instituto Fazendo História, diz que 353 famílias se inscreveram no último processo seletivo e apenas 12 delas foram certificadas.
“A avaliação para habilitar essas famílias é a cereja do bolo. Uma pessoa que tem dificuldades com o luto e o término de um relacionamento ou com preconceitos não conseguirá acolher”, diz Sara.
Em São Paulo, atualmente 2.950 crianças e adolescentes convivem em unidades do Saica (Serviço de Acolhimento Institucional para Crianças e Adolescentes), enquanto 32 (1%) estão em acolhimento familiar, de acordo com a Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social.
Somente 63 famílias estão aptas na capital a exercer a guarda provisória. O tempo de permanência, previsto pelo ECA, é de 18 meses, mas pode ser renovado pela Justiça.
No período, tenta-se restabelecer o vínculo da criança com os pais e, em último caso, com a família extensa —avós, tios, primos. Caso nenhuma tentativa tenha êxito, ela vai para o Cadastro Nacional da Adoção.
“A primeira tentativa é promover retorno à família biológica. O acolhedor deve, inclusive, fazer esforços para ajudar a restabelecer o vínculo entre a criança e os pais”, afirma Iberê de Castro Dias, juiz assessor da Corregedoria Geral da Justiça em assuntos da Infância e da Juventude.
Na prática, essa convivência dura, em média, um ano. Nesse período, a prefeitura oferece para o voluntário um salário mínimo por mês para cada criança atendida.
“Estudos mostram que o acolhimento institucional acarreta defasagem à formação psíquica, ao desenvolvimento de habilidades socioemocionais e, a partir disso, a ideia de criar uma família acolhedora”, explica Dias. “Em um abrigo com até 15 crianças nem sempre são os mesmos cuidadores. Por mais que façam um trabalho bem-feito, o acolhimento familiar faz a diferença.”
Após o fim do acolhimento, cada voluntário passa por um período de descanso, o que reforça ainda mais a necessidade de ampliar essa rede. “A família ganha um recesso de dois a seis meses para se recuperar, é um processo de luto”, afirma Delton Hochstedler, responsável pelo serviço no instituto Pérolas.
Para tentar expandir o número de voluntários, um projeto de lei do vereador Gilberto Nascimento Júnior (PSC) propõe que a Prefeitura de São Paulo passe a promover campanhas na TV, jornais e rádios.
Os irmãos acolhidos por Patrícia e Paulo têm colecionado avaliações positivas na escola. Toda a família, diz ela, envolveu-se no processo.
“Meu filho expôs a situação em um grupo e precisou fazer três viagens de carro para buscar doações de roupas, calçados e brinquedos. Minha mãe liga para convidá-los a comer o bolo de que gostam”, conta.
Diferentemente de Patrícia, que preferiu acolher crianças mais novas, o casal Jeferson Fernandes Bezerra e Silvanei de Almeida Farias decidiu procurar uma adolescente depois que a filha, de 16 anos, pediu para ter a companhia de uma garota da mesma idade.
Desde outubro, Ana (nome fictício), 16, passou a morar com a família na zona sul de São Paulo, após três anos em abrigos. O seu perfil, negra e adolescente, não é dos mais procurados para adoção e até mesmo para o acolhimento temporário.
“Ela chegou com muito medo de que, ao completar 18 anos, deverá ter garantido um emprego para poder pagar uma moradia. Mostramos que não estará sozinha, vamos juntos até conseguir o seu cantinho”, conta Silvanei.