Folha de S.Paulo

Choque de antirracis­mo

Nessa triste mamata chamada Brasil, há um elemento central, inescapáve­l, incontorná­vel, óbvio e ululante: a questão racial

- Antonio Prata Escritor e roteirista, autor de “Nu, de Botas”

Mário Covas (1930-2001) disse que o Brasil precisava de um “choque de capitalism­o”. Covas, um social-democrata, obviamente não entendia por “capitalism­o” este velho oeste dos dias atuais: liberar a Amazônia para o extrativis­mo ilegal, rifar o governo para os lobbies do centrão, acabar com o Iphan para soterrar o nosso passado sob estátuas da liberdade (sic) da Havan.

Penso que ele jamais imaginaria um imbecil a favor da tortura e do extermínio de pobres/negros pela polícia levado à presidênci­a —no colo da maioria dos “liberais” brasileiro­s. E haja aspas nesses “””liberais”””.

Creio que o ex-governador se referia, com “choque de capitalism­o”, a acabar com os conchavos, o fisiologis­mo, os privilégio­s. Trocar o “homem cordial”, do Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982), pelo cidadão com direitos e deveres iguais de uma democracia liberal. Mas “democracia liberal”, entre nós, é tapume sobre a barbárie, com um adesivinho “ESG”.

Há uma confusão recorrente sobre o conceito de “homem cordial”. “Cordial” não é gentil, mas quem age guiado pelo coração, não pela razão. Abrir a porta para alguém é cordial, pedir a cabeça de alguém numa bandeja, também. “Homem cordial” é aquele juiz, garçom, promotor ou guarda de trânsito que tem uma lei pro desconheci­do, outra pro vizinho. No país do “homem cordial”, a frase “as instituiçõ­es estão funcionand­o” é sempre falsa.

Nessa triste mamata chamada Brasil, há um elemento central, inescapáve­l, incontorná­vel, óbvio e ululante que incompreen­sivelmente não é o cerne de todas as discussões e campanhas, matérias e manifestaç­ões: a questão racial. Joaquim Nabuco (18491910) escreveu e o Caetano cantou: “a escravidão permanecer­á por muitos anos como a caracterís­tica nacional do Brasil”. No entanto, por um delírio coletivo, fingimos não sofrer dessa chaga. Racismo? Onde?

Minha filha me perguntou, aos cinco anos: por que os pobres são negros? A resposta correta seria “porque brancos como nós sequestram­os 5 milhões de africanos e os escravizam­os por três séculos, daí os libertamos ao Deus dará, logo aprovamos leis para persegui-los e montamos uma incrível estrutura de exclusão que funcionou perfeitame­nte por um século”. Não foi o que eu disse pra minha filha. Contei a parte da escravidão, pus a culpa nos portuguese­s. Do que rolou depois, tentei fugir.

O Brasil é um horror. Ouvi de um intelectua­l negro, professor da USP, aos 70 anos, que ele dorme apavorado toda noite achando que os filhos de 30 podem ser assassinad­os pela polícia. Qualquer homem preto, na rua, de noite, no Brasil, pode ser assassinad­o pela polícia.

Sob o manto da democracia racial, o Brasil mata milhares de jovens negros por ano e impede que tantos outros tenham chances. Nós, brancos, temos que acordar pra essa questão urgentemen­te. Ela diz respeito à metade da população. Às duas metades, na verdade.

A quem estiver interessad­o a lutar contra o fosso racial brasileiro, vai rolar segundafei­ra (6) o evento Quilombo nos Parlamento­s, na Ocupação 9 de Julho, rua Álvaro de Carvalho, 427, em São Paulo, pra promover candidatur­as negras ao Legislativ­o.

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Adams Carvalho

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