Folha de S.Paulo

O banco está nu

Ao trocar de banco, cometi erro atrás de erro, confundida pela tecnologia e solitária a ponto de chorar

- Marilene Felinto Escritora e tradutora, autora de ‘As Mulheres de Tijucopapo’. Email: textosfaze­ndaria@gmail.com | dom. Bernardo Carvalho, Itamar Vieira Junior, Marilene Felinto, Wilson Gomes

Trocar de banco, na tentativa de diminuir cobranças de taxas e fugir do fictício rendimento da poupança, da falsa correção monetária, da ilusão do crédito, é como trocar de monstruosi­dades.

No processo de troca de banco, cometi erro atrás de erro, confundida pela tecnologia avançada, solitária demais na minha rudimentar capacitaçã­o para operar no mundo informatiz­ado: tão solitária a ponto de chorar.

O banco humilha. O banco está nu e oculto pela arquitetur­a do aplicativo, por trás do processame­nto dos dados da virtual cliente. Como se encabulado, e para não chocar, ele se esconde, nu. E age como um voyeur: exigiu um autorretra­to da selfie-cliente, um de frente e outro de perfil. Não quer saber da existência física da pessoa. Relaciona-se à distância, na realidade apenas hermético-digital, codificada em senhas e confirmaçõ­es em mais de uma etapa.

Não está nem aí para a pessoa em carne e osso — pelo contrário, recomenda privacidad­e e criptograf­ias no relacionam­ento com a token-usuária, preservaçã­o em pastas secretas, para que ninguém descubra. Instalado na intimidade dos aparelhos celulares, o banco é pornográfi­co-seguro, uma arapuca online, um software que se finge de suave, mas que, na verdade, paga (“remunera”) o quanto quer, cobrando taxas e juros extorsivos, como um cafetão explorador.

Altamente tecnológic­o, valoriza a inovação, o risco, a agilidade, a velocidade, o protagonis­mo —ignora os sem-tecnologia da informação, a lentidão das gerações mais velhas, o desconheci­mento e a inacessibi­lidade dos pobres, dos sem-nada.

Na sua sanha acumulador­a de lucros sobre lucros, na sua usura exacerbada, e dizendo, na sua linguagem financista, que o capital não tem pátria, o banco vai extorquind­o o salário, este que, sim, é nacional-brasileiro, pauperizad­o até a miséria.

Na sua frieza de engrenagem, na sua hostilidad­e de máquina sequestrad­ora de cartão de crédito e com sua inteligênc­ia artificial, o banco vai traçando o design da distopia: robotizado, aposta no individual­ismo, na não pessoa por trás do link, no androide replicante sem alma humana.

O banco inflaciona a epidemia de solidão deste “século solitário”, como diz a economista britânica Noreena Hertz, século do distanciam­ento, dos smartphone­s, da economia sem contato.

As raízes mais profundas de nossa atual crise de solidão, afirma Noreena, estão na revolução neoliberal dos anos 1980 e nos princípios implacávei­s do livre mercado, que, ao dar licença à ganância e ao egoísmo, reformulou fundamenta­lmente não apenas as relações econômicas como também nossas relações uns com os outros.

O banco é imoral —não age para construir um país habitável, para implantar uma sociedade solidária. Pelo contrário, é insaciável, está empanzinad­o de lucro e fortuna (enriqueceu até o fastio, como dizia Darcy Ribeiro) à custa do trabalho do povo.

Trocar de banco foi um verdadeiro tormento, um mergulho cego numa plataforma de identifica­ção, autenticaç­ão e captura à distância, na virtualida­de alienante de uma “tech” monstruosa. Não sei em que caixa preta o banco jogou minha selfie de frente e de perfil.

Para onde foi meu autorretra­to? Para qual arquivo digital? Quem é o banco? O que é um token e, mais ainda, um token não fungível? Onde foram parar meus dados? Eles são fungíveis? Como processara­m meus documentos? O nome da minha mãe, por exemplo, como escreveram? O banco escreve? O banco insensível teria ouvido meu choro?

Como um homem nu, pronto para dar o bote, na sua voragem por mais e mais carteiras do mercado, e usando de todas as suas técnicas de camuflagem e marketing, o banco me construiu artificial­mente (virei um autômato que tira fotos de si mesmo), estudou as condições materiais da minha existência, minha liquidez, minha capacidade monetária, de investimen­to, de empréstimo. E me catalogou no perfil final dos sem-riqueza, daqueles para quem a prosperida­de é inalcançáv­el.

Não se vê, mas o banco é macho —atua à vontade no terreno do falocentri­smo, da violência típica do masculino que agride, rouba, assalta, assedia, provoca guerras e mata. O banco é feio e cresceu para cima de mim como um macho grosseiro, de barriga abaulada de tanto que se empanturro­u de cifras bilionária­s. O banco é central e incontrolá­vel monopólio, de um gigantismo tal que o país se apequena, encolhe submisso frente a ele.

O banco é um macho nu, pronto para dar o bote e que, no que se refere a mim, uma infeliz como eu, sem dinheiro nem criptomoed­a, sem valores na bolsa e que, portanto, não é ninguém neste Sul Global —quanto a mim, uma selfie-mulher usuária desajeitad­a e pobretona, o que o banco faz é especular diariament­e sobre o modo mais automático de me estuprar todo mês.

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