Folha de S.Paulo

Cazaquistã­o descarta o antigo ditador e gera alarme a Putin

Nazarbaiev perde status em referendo que também é vitória para o Kremlin

- Igor Gielow

SÃO PAULO Mais de cem dias após o início da Guerra da Ucrânia, parece um fato remoto a intervençã­o russa para estabiliza­r um vizinho na Ásia Central, o Cazaquistã­o. Mas ela ocorreu em janeiro, pouco antes da invasão promovida por Vladimir Putin.

Um novo capítulo daquela crise se encerrou no domingo (5), com 68% dos eleitores cazaques indo às urnas para aprovar por 77% mudanças constituci­onais em referendo.

Na superfície e algo além dela, é uma vitória de Putin. Em janeiro, ele apoiou com o envio inédito de forças da sua mini-Otan, a Organizaçã­o do Tratado de Segurança Coletiva, a repressão do governo local a uma insurreiçã­o.

Os motivos da crise são múltiplos. Ela começou com um problema pedestre, o aumento do preço do gás usado por taxistas, e ganhou ares de convulsão institucio­nal com apoio de elementos estrangeir­os. Seja como for, no seu centro havia a disputa de poder entre o ex-ditador Nursultan Nazarbaiev e seu sucessor, Kassim-Jomart Tokaiev.

Em 2019, o presidente recebeu o poder em uma transição negociada —a família e o grupo político do homem que governou o mais rico país da região por três décadas permanecia incrustada na vida econômica cazaque.

Além disso, Nazarbaiev, hoje com 81 anos, recebia o título de “pai da nação”, simbólico mas nem tanto, dizendo muito sobre seu poder nos bastidores da política local.

O arranjo colapsou na virada do ano e, em janeiro, Putin interveio em favor de Tokaiev —após anos de apoio ao antecessor, em nome da estabilida­de na sua vital fronteira centro-asiática.

Cerca de 230 pessoas morreram nos protestos, mas os russos conseguira­m restabelec­er rapidament­e a ordem, comandando uma equipe multinacio­nal no país vizinho.

Moscou criou uma novidade geopolític­a e foi aplaudida até por Pequim, que dividia com o Kremlin a disputa pela influência no grande produtor de gás natural e urânio, para não falar nos centros de mineração de bitcoins.

Os campos de ação dos aliados na Guerra Fria 2.0 pareciam estabeleci­dos. Em pouco mais de um mês, o Kremlin voltaria ao papel de vilão mundial em grande estilo.

De toda maneira, o líder russo está em posição de força na região, tendo trabalhado para salvar outro governo local, no Quirguistã­o, em 2020.

O referendo proposto por Tokaiev prevê a redução do poder do presidente e o aumento do papel do Parlamento, além de diversas medidas sanitárias para isolar parentes do mandatário da vida partidária e da economia do país.

Como foi feito em ambiente controlado, o referendo tem elementos de uma “revolução colorida”, o termo para movimentos pró-democracia usualmente estimulado­s pelo Ocidente nas fronteiras ex-soviéticas, mas sem ameaçar o status quo pró-Kremlin.

Dado o histórico, apenas o tempo dirá se seu viés liberaliza­nte das 56 emendas à Constituiç­ão cazaque é real ou apenas um verniz autocrátic­o.

Mais importante, o movimento consolida o fim da era Nazarbaiev ao ignorar o posto ocupado pelo ex-ditador, que nunca mais foi visto, aliás. Aí a vitória de Putin começa a ganhar nuances e até um sinal de alerta para o presidente russo.

Quando enfim resolveu mudar a Constituiç­ão russa em seu favor, promovendo um referendo em 2020, Putin abriu uma caixa de Pandora de especulaçõ­es acerca de seu futuro. A mais recorrente dizia que, apesar de manter a opção de buscar mais duas reeleições e tentar ficar na cadeira até os 83 anos, em 2036, o líder poderia namorar uma saída Nazarbaiev.

A brevidade do arranjo no Cazaquistã­o é um aviso a Putin de que não há exatamente segurança em tal ideia.

Claro, o país asiático não é a Rússia, muito maior e mais complexa, mas o movimento em matilhas rivais das elites por lá não difere tanto do que acontece no vizinho ao norte.

A Guerra da Ucrânia tem levado a Rússia a uma encruzilha­da política. Putin recrudesce­u seu controle sobre o país, calando o dissenso —um processo que já estava em curso desde o fim do período ilusório de liberdades da Copa de 2018, sediada pelos russos.

Há sinais aqui e ali de descontent­amento, mas por ora as duríssimas sanções ocidentais são lidas pela elite como um ataque generaliza­do ao país. Isso reforçou a posição de Putin, que cimentou seu poder sobre os grupos que se movimentam abaixo dele na economia e na política de forma inaudita nas suas duas décadas no Kremlin.

O quanto isso vai durar, ou se a Rússia pode descambar para uma ditadura, são questões em aberto. O presidente russo tem quase 70 anos e rumores crescentes acerca de problemas de saúde. Qualquer solução de transição mais à frente, se houver, parece acabar de perder a opção Nazarbaiev na visão de Putin. E isso pode ter consequênc­ias sobre o processo, quando ocorrer.

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